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White Haus: “A liberdade de experimentar”

White Haus: “A liberdade de experimentar”
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Conheça-se esta casa com muitas divisões: onde um argumentista vive com um designer que se tornou DJ e um guitarrista que aprendeu a manipular samples, ao mesmo tempo que descobria que conseguia fazer música sozinho.

 

Tudo isto é João Vieira, o designer gráfico que exportou as suas festas londrinas para o Porto, no início do século XXI, e deu que falar com as noites do Club Kitten. Em paralelo à ousadia pós-punk dançável dos X-Wife, regressou em definitivo às pistas com o seu próprio projecto, os White Haus. O primeiro EP e o álbum de estreia podem ter sido pensados enquanto “eu” mas, no registo #2, as portas desta casa escancaram-se. Não são só as gatas de João que dão o aval para estas canções – e ele vai anunciando, no segundo single de Modern Dancing, “this is what I’m talking about, my greatest hits”. Recheados de humor mas, acima de tudo, plenos de liberdade. A liberdade que se encontra, apenas, quando se sabe que não há nada a perder e experimentar é o único caminho.

 

Há, no discurso de João Vieira, uma impressionante gratidão e reconhecimento pelos feitos que tem vindo a acumular ao longo da última década e meia. É por isso que, numa fria noite de Dezembro, ao chegar a casa, liga o rádio e permanece no carro: está a passar uma das suas canções. “Depende da canção, depende da hora, depende de muita coisa. Às vezes é estranho… Resolvi ligar a rádio e fiquei a ouvir a música: era o “All I Ever Wanted”, uma música que me lembro de ouvir nos headphones e entrar mesmo naquela cena. Há músicas que me dizem mais do que outras e aquela disse-me mesmo muito, não sei porquê… Tem uma emoção forte qualquer, no fim, é a música que fecha os concertos, há ali qualquer coisa de especial. O “Far From Everything” também… São músicas que me tocam mais e que, se calhar, são mais íntimas para mim, não sei explicar. Mas, ainda hoje, sinto uma emoção muito grande a ouvir-me na rádio, sinto uma emoção muito grande quando estou nos concertos e estão pessoas a cantar as letras ou que vão com os discos, no final dos concertos, para eu assinar. Fico super… não é emocionado mas fico tocado que haja pessoal que esteja interessado naquilo que tu estás a fazer e que as rádios queiram passar a tua música. É um trabalho que demorou muitos anos a fazer, foi algo pelo qual lutámos uma vida inteira – conseguires manter uma carreira, passados 14 anos de editar discos, e ainda estares a passar na rádio: é algo muito bom e que eu não dou como garantido”. Talvez seja por isso que, volvida a tal década e meia, a vontade de continuar a fazer mais e diferente se mantenha imutável. Viaje-se, então, ao início.

 

A verdade é que João podia não ter acabado músico – ou melhor, o seu sonho de menino, ao assistir ao mítico programa de Herman José, O Tal Canal, imaginava-se a escrever as palavras de “O Diário de Marilu”. O humor, nas suas letras, pode só ter aparecido em Modern Dancing, o álbum editado em Setembro de 2016, enquanto White Haus, mas os primeiros sintomas estão muito mais atrás. “O lado cómico, o lado do humor – sempre gostei dessa parte, nunca a tinha explorado e nunca percebi porquê. Até porque eu já tinha alguma experiência para trás: escrevi sitcoms, há muito tempo, trabalhei como argumentista, há 14 ou 15 anos, e cheguei a escrever várias séries que nunca foram para o ar, porque não foram aceites, na altura. Mas eu tinha a ideia de fazer séries: era um dos projectos de vida que eu tinha, mesmo antes de fazer música”. A música, na verdade, surge (quase) por acaso.

A viver em Londres, durante os anos 90, juntou-se a alguns amigos, na zona este da cidade do Tamisa, para começarem a organizar as festas que ficariam baptizadas como Club Kitten. Foi, igualmente, nessa década, que viu um concerto que nunca mais abandonaria a sua memória: em 1995, os Pulp editavam Different Class, um álbum que retratava, de forma única, a sociedade inglesa. Em Março do ano seguinte, quando a banda de Jarvis Cocker ocupava a Wembley Arena, João estava no público. “O que senti foi que havia ali algo do que estava a acontecer na altura e que estava a mudar a vida de muita gente: principalmente pelo lado das letras e da figura carismática do Jarvis Cocker. Muita gente que viveu em Inglaterra, mesmo não sendo inglês, conseguia identificar-se com as letras do Jarvis Cocker, houve uma grande empatia entre as pessoas e ele. Estava a viver-se muito “na altura””. Com essa filosofia presente, quando regressa a Portugal, traz consigo a vontade de viver a altura.

A (re)adaptação à cidade do Douro não é fácil – mas a música acaba por salvá-lo. Achou que o Porto tinha uma “meia dúzia” de pessoas que poderiam acompanhá-lo no sonho emigrante do Club Kitten: por isso, voltou a vestir a sua capa felina, pôs as mãos nos pratos e… fez história. Pensou encontrar pequenos espaços, onde actuaria para 50 pessoas – passados dois anos, tinha camionetas em excursão para o Lux-Frágil, em Lisboa, e o Teatro Sá da Bandeira, no Porto, esgotado, com mais de 2000 pessoas. “O Club Kitten, em Portugal, quando começou, em 2001 até 2003, que foi o seu auge, digamos assim, era uma coisa que estava a acontecer e eu vivo muito nessas coisas. Hoje em dia, é diferente: há pouco tempo celebraram-se os 15 anos de Club Kitten [no NOS Em D’Bandada, em 2016] mas foi de uma forma diferente porque é algo que já foi buscar uma nostalgia. Na altura não, não havia nostalgia nenhuma: era aquilo, era o que estava a acontecer, era a música que estava a sair e eu vivo muito dessas coisas – o que é que está a acontecer agora e fazer parte desse momento, também”.

Em 2002, ao lado de Rui Maia e Fernando Sousa, João pega na guitarra e começa a dar voz aos X-Wife – que, nos anos seguintes, editariam quatro álbuns. Até que, de forma natural, o trio do Porto entra numa espécie de pausa. E, assim, nascem os White Haus – bom, ok, talvez não tenha sido “exactamente” assim. Não foi, seguramente, uma decisão tomada. Mas foi, claramente, auxiliada por um magnífico manjar de informações chamado… YouTube. “O YouTube foi uma ferramenta super importante – se não fosse o YouTube eu não tinha conseguido lançar aquele primeiro EP. Basicamente, aquilo tem resposta para tudo: queres saber como é que pegas num sample e pões o sample mais rápido ou mais lento, vais lá e explicam-te; queres saber como é que cortas isto e fazes aquilo, explicam-te tudo, há exemplos de tudo. Eu estava constantemente ligado à net e tinha um ecrã no YouTube e outro no ProTools, a compor e a fazer coisas. Isso foi uma ferramenta, realmente, muito importante – a outra foi experimentar tocar baixo pela primeira vez”. O objectivo era aplicar uma outra dose do seu olhar à componente ritmo mas, para aprender a tocar baixo, além do mui amado YouTube, dedicou-se a obras alheias – de disco e de house. “Aprendi, sim, a tocar por cima de outros discos e foi aí que consegui perceber que conseguia fazer a música de White Haus: pegar num sample de bateria, tocar uma linha de baixo por cima e criar uma voz e, depois, todos os sintetizadores, viriam a seguir”. Foi assim que começou a trabalhar no seu primeiro EP enquanto White Haus, o homónimo que veria a luz do dia em 2013.

“Depois fui aprendendo cada vez mais, fui complicando as coisas, fui comprando material, fui comprando sintetizadores, fui aprendendo cada vez mais, lendo muito, revistas, até livros. Comecei a fechar-me muito no meu estúdio, a trabalhar em música” – fê-lo sozinho. Foi assim que concluiu The White Haus Album, a estreia em longa-duração que editou em 2014. Porém, as canções do disco tinham que ganhar corpo em palco – e, para isso, João precisava de ter uma banda que o acompanhasse em concerto. Os White Haus não deixaram de ser o projecto de João Vieira mas, quando chegou a altura de trabalhar em Modern Dancing, os braços criativos já eram menos “eu” e mais “nós”. O processo de trabalho foi, por isso mesmo, “diferente: já tinha uma imagem da banda na minha cabeça, já sabia como é que aquilo ia ser no palco… É muito diferente estares a criar música sem saber quem são os elementos da banda que te vão acompanhar, como é que vais tocar aquilo, ou já a imaginar as coisas todas. Como eu já tinha outra experiência, já tinha posto o primeiro álbum de lado, já estava resolvido, agora ia fazer música de uma forma diferente”. Para João, os músicos que o acompanham em palco precisam de sentir que “pertencem”. “Há aqui uma coisa que é importante frisar: quando tens músicos que te acompanham na estrada e que são, normalmente, os mesmos, é necessário motivá-los, que eles sintam que fazem parte do projecto, que não são “session musicians”, músicos profissionais que contratas para vir tocar. Há uma química importante que é preciso criar e um companheirismo – tudo isso é importante quando se está em palco e quem está a ver também tem que sentir isso. Acho que isso é importante e quis envolvê-los”. Por outro lado, uma vez que os mesmos músicos que iam gravar o disco seriam aqueles que iam tocar estas canções em concerto “também podiam dizer “não faças assim, faz assim”… Estiveram envolvidos: achei que ia facilitar todo o processo, podiam contribuir com ideias e funcionou muito melhor – em estúdio, foi uma experiência super agradável estar com eles. Também queria ter essa experiência: acho que é bom partilhar, não estar fechado numa cena demasiado egocêntrica, a dizer “não, eu quero fazer tudo”. A partir do momento em que estás com pessoas com quem estás bem, eu gostei de partilhar”.

 

Começou numa cabeça mas a música de White Haus nunca foi um ser uno: aliás, nestas canções, estão bem evidentes as várias essências de João Vieira – o que ouvia Beastie Boys quando andava de skate mas que gastou o seu primeiro dinheiro numa compilação dos Cure. Segundo o seu autor, aqui há “um bocadinho de hip hop e a cultura do skate, está sempre ali ligada” e “os Cure [surgem] pelas referências dos 80s”. De certa forma, é quase como se tudo coubesse no imenso caldeirão musical que responde por White Haus: numa espécie de pilhagem perfeitamente legal, surge o disco e o synth-pop mas também o electro e o pós-punk. “Sim mas eu faço isso de uma forma que funcione como um todo – não faço uma música completamente hip hop, depois outra new wave, depois outra electro… Gosto é de utilizar essas referências todas nas minhas músicas de forma a que faça sentido e que torne as canções interessantes, que marque uma identidade um pouco diferente de outros projectos que eu tenho – e até do álbum anterior”. A procura de diferença entre o álbum de estreia e Modern Dancing também passa por aí: “tentei utilizar todas essas ferramentas e referências que tenho de uma forma muito mais solta, não demasiado premeditado mas sim deixando-me levar. Neste álbum, houve uma liberdade muito grande em experimentar e arriscar, com menos medo de qual poderia ser a reacção ou a crítica. No primeiro álbum, sendo um primeiro trabalho, estás mais renitente em relação ao que é que as pessoas vão dizer –  agora, já não estou nada preocupado”.

Se dúvidas houvesse acerca da diferente abordagem dos dois álbuns de White Haus, um simples olhar para as capas tornaria tudo evidente. Onde The White Haus Album apostava em tons soturnos, Modern Dancing é uma geométrica explosão de cor. “A capa foi sempre muito importante na música: há aquelas capas emblemáticas que marcaram e que tu associas [aos discos], [onde] é impossível dissociares as duas coisas. Uma pessoa entra numa loja de discos e vê um disco de um grupo ou de um artista de que nunca ouviu falar: a coisa que vai chamar a atenção é a capa. Gosto muito de coisas monocromáticas, um bocado minimalistas, usar duas ou três cores, porque acho que isso se destaca e diferencia. Olhando para aquela capa [a de Modern Dancing], eu associo a este disco. A cor… Enquanto o outro tem um lado mais sombrio – e tem uma capa cinzenta com letras pretas –, esta eu queria que reflectisse a música: falei muito com o designer e disse-lhe exactamente aquilo que estava a sentir e o que queria que se sentisse quando se visse a capa”. O próprio título do disco acompanha esse espírito, fazendo “lembrar um pouco do new wave do início dos anos 80, até acho que é um bocado retro. Eu acho isso muito importante: todo o universo – as fotos, o grafismo, as letras – não é só a música. Tudo vive e podes criar ali um conceito à volta de tudo, que torna o projecto mais interessante”.

Se The White Haus Album era marcado pelas sombras, Modern Dancing é um dia de sol – bem disposto e descontraído. O primeiro single retirado do disco vai lançando as pistas: “This Is Heaven”. Segue-se a ironia de “Greatest Hits”. João apressa-se a explicar: “É uma frase da música – a meio digo “this is what i’m talking about, my greatest hits” – é sobre um produtor que tinha discos de ouro”. É esta a outra mudança presente em Modern Dancing; o regresso de João à sua veia humorística. “Foi um lado que nunca explorei muito nos meus discos… Foi um entusiasmo muito grande fazer este disco: enquanto nos outros havia um lado um pouco mais ansioso, havia uma ansiedade, não sei, via as coisas de uma forma mais negativa, desta vez, achei “porque não apostar numa coisa diferente”? Mesmo a postura em palco mudou – porque acho que devia mudar e devia seguir os meus instintos e era isso que estava a sentir na altura”.

 

João já não é Kitten mas não vive sem as suas gatas – aliás, quase parece serem elas as responsáveis pelo aval final para as canções. Ou, pelo menos, elas acham que sim. Quando chegou a hora de montar o seu estúdio – “estou num espaço partilhado com outros artistas, um fotógrafo, um designer e outro músico” –, João levou as suas duas gatas “porque passo lá a maior parte do meu dia”. Uma “está sempre deitada em cima do meu SH 101, a outra está mais gorda e não consegue subir para os teclados, fica em baixo… Mas acompanharam o processo todo. Quando as músicas são mais a abrir, uma delas fica meio louca, anda às voltas e começa a trepar paredes – quer dizer que a música está boa para a pista de dança”. Em criança, João gravava cassetes para passar música nas festas de garagem ao mesmo tempo que sonhava ter um programa de rádio. Hoje, dá aulas de Modern Dancing – é caso para concordar com ele e dizer que “this is heaven”.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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