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António Zambujo: “A arte tem que ser sentida”.

António Zambujo: “A arte tem que ser sentida”.
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Partilha o nome com a árvore que dá a melhor azeitona: hoje, é comendador mas, em criança, andava a roubar figos. Pelo meio, surge tanto o fado e o cante alentejano quanto a paixão pelo jazz e pela música brasileira. António Zambujo não gosta de aviões nem de aeroportos mas partiu de Beja para conquistar o mundo.

 

Não há nada de comum em António Zambujo: apresentou-se com um álbum ao qual chamou O Mesmo Fado mas, rapidamente, se percebeu que de “mesmo” o seu fado não tinha nada. Impregnou-lhe a toada expressiva da música brasileira que aprendeu nos discos de João Gilberto mas também a espontaneidade do jazz de Chet Baker, que desde sempre o cativou. As suas referências ainda passam por Tom Waits, apesar de não gostar de se ouvir a cantar em inglês. A sua obra tornou-se, de tal forma, transversal que as suas colaborações tanto passam por nomes como Márcia quanto Dengaz, a ponto de se assumir como “a prostituta da música portuguesa”. Na hora de fazer um parêntesis no seu percurso discográfico, escolheu o espólio de Chico Buarque e editou Até Pensei que Fosse Minha – e, assim, nunca o fado foi tão brasileiro. É este o homem que se assusta com a voracidade da vida quotidiana mas que não se imagina a voltar a calçar saltos altos.

 

Beja: o castelo, os figos e a Tasca do Vizinho Cintra.

 

António, vamos até Beja? É verdade que, em criança, trepavas as muralhas do castelo e andavas a roubar figos?

Era, por acaso, é verdade. Até que os funcionários da câmara começaram a tapar os buracos da muralha com cimento – o que foi uma estupidez. Esteticamente, a muralha ficou muito mais feia, tirou-nos a possibilidade de subir lá acima e os figos começaram a apodrecer naquela árvore. Foi uma coisa muito estúpida… Mas, enquanto pudemos, fomos lá muitas vezes. Os figos eram deliciosos!

 

E tinhas o sonho de partir uma perna?

Achava que era popular entre as miúdas. (risos)

 

O que acabas por partir é um pulso e já adulto, em 2015.

Não correu nada bem: não correu nada bem porque tive que cancelar concertos, tive que tocar durante quatro meses com o Gustavo Viana que, por acaso, se adaptou muito bem ao resto da banda e às músicas que tocávamos. Correu tudo muito bem mas, para mim, era tudo muito estranho – era como se me faltasse ali qualquer coisa. Imagina: passas anos e anos com a guitarra no colo e, depois, de repente, vês-te à frente do público sem nada. Parece que não tens protecção – aquilo [a guitarra] funcionava quase como uma barreira.

 

Dizes que, no início da tua carreira, começaste a tocar sentado porque não sabias o que fazer aos braços – nessa altura, já tinhas aprendido?

Neste caso, não havia essa preocupação porque, apesar de não ter a guitarra, continuei a cantar sentado, estava ali mais à vontade. No concerto do Até Pensei Que Fosse Minha, por exemplo, não toco guitarra e estou super-confortável – até já troco a perna, meto o pé em cima do monitor, todo estiloso (risos).

 

“No concerto do Até Pensei Que Fosse Minha, por exemplo, não toco guitarra e estou super-confortável – até já troco a perna, meto o pé em cima do monitor, todo estiloso (risos)”.

 

Voltemos à tua infância: estudaste clarinete mas começaste por inventar instrumentos com cadeiras e talheres. Ainda inventas instrumentos?

Nunca mais. Voltei, há pouco tempo, ao piano – tenho um agora aqui em casa [em Lisboa] – e estou a voltar, também, a pouco e pouco, ao clarinete. Comprei há pouco tempo um clarinete: ontem ou anteontem, estava em casa, a mostrar ao meu filho como é que se tocava, e ainda consigo tirar som. É como aquela história de andar de bicicleta… tecnicamente, não te esqueces e lembras-te das posições todas. Claro que, depois, precisas de readquirir a prática de ler música – porque na música que fazemos, normalmente, não costumamos ler partituras. Já perdi esse hábito e tenho que o readquirir mas gostava de voltar a fazer isso.

 

Entretanto, passavas na Tasca do Vizinho Cintra e ouvias os homens a cantar, ao mesmo tempo que se atiravam ao “mata-bicho”.

É uma coisa que não é fácil de explicar – é uma coisa que se sente. Lembro-me, desde miúdo, de ouvir esses homens a cantar e não sei porquê… Como é que se explica que uma criança com quatro ou cinco anos goste daquilo? Não se explica – gostava e andava atrás deles. Até que eles me sentaram em cima do balcão, gostaram de me ouvir e acharam piada, claro! Um miúdo de quatro anos a cantar ali no meio daquela malta toda: tem piada, né? Até me ofereciam copinhos iguais aos de vinho que eles bebiam, com gasosa, e eu ficava todo contente – era o meu mata-bicho. A minha avó também me ensinava as letras: ela sabia muita coisa do cancioneiro porque o meu avô, que eu já não conheci, tinha uma ligação forte à música tradicional, ensaiava grupos, organizava festivais de grupos corais… Talvez por isso a minha avó soubesse tantas músicas tradicionais e ensinou-me bastante.

 

Como é que passaste do balcão da Tasca do Vizinho Cintra para os palcos mais a sério?

Deve ter sido num concurso em que uns amigos me inscreveram, em Beja, no Centro Cultural e Desportivo do Hospital de Beja. Era perto da casa dos meus pais e da minha avó: organizavam umas noites de fado e, numa dessas noites, organizaram um concurso em que a malta me inscreveu. Cantei uma música – um fado, na altura – e ganhei o primeiro prémio. O segundo prémio, foi para uma mulher e, no terceiro, ficou um rapaz que também era meu amigo, o Luís Saturnino – e então, depois, fizemos ali uma grande farra. A partir daí, as pessoas ali à volta, nas aldeolas, organizavam as noites de fado e convidavam-me para cantar.

 

Lisboa: Amália num musical e Chico Buarque num disco

 

Como é que acabas a cantar, regularmente, em Évora?

Houve malta que me ouviu e que gostou de me ouvir e, na altura, desafiaram-me para ir cantar à Pousada dos Lóios [em Évora]. Na altura, cantava lá outro rapaz de Beja, o Francisco Sobral (que também veio para o musical da Amália, fazia de Alfredo Marceneiro). Íamos fazendo, entre os dois – na altura, ele estava mais tempo em Lisboa e eu ficava lá mais tempo em Évora, ia lá cantar dois dias por semana. Nessa altura, eu tinha um bar, em Beja, onde também organizávamos concertos, quase todas as noites – aos domingos à noite, tocava lá nesse nosso bar, que era meu e de um amigo, que é da Vidigueira. Nos outros dias: dois ia a Évora e, depois, comecei a vir a Lisboa, com alguma frequência.

 

Até que vieste a Lisboa com um amigo e reúnem-se uma série de coincidências que acabam por mudar a tua vida.

Vim com o Mário Esturninho… São coisas que acontecem, todas, por felizes acasos: o facto de eu ir a Évora, o facto de eu estar em Évora nessa noite, o facto de ele ter que vir tocar ao Clube de Fado e eu estar super-disponível para vir com ele porque também não conhecia… Cantava no Clube de Fado uma amiga, que era a Ana Sofia Varela, que eu já conhecia há bastante tempo. A sorte de o Mário Pacheco estar lá naquela noite, ter gostado de me ouvir e ter passado a convidar-me para ir lá com mais frequência. Estar lá naquela noite esse tal produtor [do musical Amália, encenado por Filipe La Féria e estreado em 1999]… Sabes que, ir para o Amália [interpretar, até 2004, Francisco Cruz, o primeiro marido da fadista], naquela altura, foi um péssimo negócio para mim – eu tinha o bar em Beja, ganhávamos algum dinheiro e tinha aquelas coisas das noites de fado; fui para o Amália e larguei isso tudo – financeiramente, fui bastante prejudicado. Mas achava que valia a pena dar um passo atrás para, depois, dar dois para a frente.

 

Que aprendizagem é que retiraste da experiência?

Aprendi muito. Representar – eu nunca fui nem nunca serei actor! O Filipe faz aquelas coisas todas – a encenação e assim – mas o que faz muito, muito bem é a direcção de actores. Ele dirige muito bem os actores: consegue estar aqui, à tua frente, e mostrar-te exactamente aquilo que pretende e tu consegues perceber. Não sei explicar mas a direcção de actores dele é fantástica – e isso ajudou-me bastante: a forma como passei a pisar o palco, fazer mais de mil sessões (foram mil e tal), com salas sempre esgotadas, dá-te uma segurança… Senti isso quando, depois, voltei aos meus concertos: senti que, de facto, tinha uma confiança diferente da que tinha antes de fazer o musical.

 

Entretanto, editas o teu primeiro álbum, em 2002, O Mesmo Fado. Só que, disco após disco, aquilo que se tornou a tua marca – os alicerces do fado e da música tradicional cativados pelas tuas paixões pelo jazz, pela música brasileira, por África – foi-se tornando mais forte. Os puristas do fado não gostaram nada, pois não?

Ui: quando saiu o segundo disco [Por Meu Cante, em 2004] foi uma coisa… Porque o primeiro disco era mais com música tradicional e fado e tal. No segundo, espeto-lhes com músicas diferentes, com uma interpretação completamente diferente… Acho que essas mudanças vão acontecendo naturalmente: o que mais molda um artista, o que mais molda um músico, é aquilo que ele ouve. Não são coisas que se estudam no Conservatório nem nas Escolas Superiores nem nada disso: vais ouvindo e vais tu escolhendo daquilo que queres para ti – o conceito estético para a tua música, a abordagem, a valorização da palavra (apesar de, no fado, também se fazer muito isso), aprendi, sobretudo com o João Gilberto, naqueles discos só de voz e guitarra… Como dizia a Natália Correia, a poesia é para comer: parece que estás a comer as palavras. É uma coisa maravilhosa e achei que era uma coisa que eu também devia fazer. Ou, pelo menos, tentar.

 

“O que mais molda um músico é aquilo que ele ouve”.

 

Quando, em 2014, editaste Rua da Emenda, todo o disco soa a conclusão de um ciclo – até que, ao chegar a “Viver de Ouvido”, parecias começar a olhar para o futuro. Até Pensei que Fosse Minha não é isso, pois não?

Não é o futuro – o Até Pensei Que Fosse Minha é um parêntesis. É um tributo que resolvemos fazer ao Chico Buarque pela obra que ele tem, pela obra que ele criou e pela importância que essa obra tem em mim – lá está, na tal história de ouvir muito e de sentir muito a influência daquelas músicas todas. Gravei 16 mas podia ter gravado mil.

 

Tinhas 100 canções pré-seleccionadas e o próprio Chico Buarque ainda te sugere mais uma.

A pré-selecção é a coisa mais difícil de fazer e ele sugeriu uma que eu não conhecia, o “Cecília”. Essa, naturalmente, como foi ele que sugeriu, teve que ficar. Depois, fiquei apaixonadíssimo pela música e gostei imenso do arranjo que o Marcello [Gonçalves] fez. Sabes, na altura das gravações, há sempre uma música que te salta mais à vista, a ti, enquanto a estás a cantar – neste disco, o “Cecília” foi a música de que mais gostei e que mais ouvi durante o processo de gravação.

 

Chico Buarque não foi, apenas, o ponto de partida para Até Pensei Que Fosse Minha – ele acompanhou mesmo o processo e acabaram por fazer um dueto em “Joana Francesa”.

O dueto não foi nada programado.

 

Mas ele andar por “ali” não te deixou mais nervoso?

Não deu nervos, não, nada – eu nunca sinto nervos a cantar! Se é a coisa que mais gosto de fazer?! Se ficar nervoso, não vou desfrutar daquilo que estou a fazer! Não posso estar nervoso, tenho que estar tranquilo – olha, é isto, quem gosta, gosta, quem não gosta, não gosta. Não posso obrigar as pessoas a gostar ou a não gostar mas posso ficar com a consciência tranquila de que estou a curtir e que estou a gostar daquilo que estou a fazer e estou a fazer aquilo de que mais gosto. Estou a ser o mais honesto possível para quem me está a escutar.

 

Mundo: entre aeroportos e saltos altos, sempre com o Benfica na bagagem

 

É por não quereres estar nervoso quando cantas que não vês o Benfica jogar antes dos teus concertos?

É horrível, é horrível, é horrível: altera-me completamente, altera-me o sistema nervoso e faço de tudo para não ver. Mas, depois, há sempre um estúpido que trabalha comigo que me vem dizer o resultado ou atiçar um bocadinho o bicho mas eu tento abstrair-me ao máximo – agarro-me à guitarra, fico ali a tocar e a ouvir música para não saber. Porque altera-me muito o sistema nervoso, é verdade.

 

Já de colaborações gostas muito, não é? A ponto de te teres definido como “a prostituta da música portuguesa”?

(risos) Se gostar… Tenho que gostar daquilo que me é proposto e, se gostar, não tenho problemas nenhuns em cantar [com outros artistas]. Normalmente, as participações que fiz foi com artistas que eu admiro e de quem gosto muito. Naturalmente, o caso mais conhecido é o Miguel Araújo [com quem, em 2016, fez quase três dezenas de concertos nos Coliseus de Lisboa e Porto] mas já fiz também com o Samuel Úria, com a Márcia, com os Deolinda…

 

Talvez o grande “alien” nessa lista de participações seja o que fizeste com Dengaz, em “Nada Errado”, que está no Para Sempre.

Com o Dengaz foi um desafio diferente: eu não conhecia muito bem o trabalho dele mas falámos e ele desafiou-me para participar também na parte da composição da música. A partir dessa altura, comecei a interessar-me por aquele género [o hip hop], que acho muito interessante. Claro que há coisas más e coisas boas mas há muita coisa que se tem feito no hip hop, em Portugal, que é bastante interessante, do ponto de vista da escrita, sobretudo do ponto de vista da escrita. Foi mais uma porta que se abriu… Agora, também fiz participações nos discos do Paulo de Carvalho [Duetos] e do [João] Gil [João Gil Por], que comemorou 40 anos de carreira… O Paulo de Carvalho 55. Desafiaram a malta nova para cantar com eles: foi giro e acho que correu bem.

 

Nos teus discos, cantaste em francês, em castelhano e dizias que, para cantares em inglês, só se fosse uma canção do Tom Waits. Mas interpretas “Life On Mars?” no álbum de tributo Bowie 70.

Foi um desafio do David Fonseca.

 

“O Benfica altera-me muito o sistema nervoso”.

 

Gostaste de te ouvir em inglês?

É estranho…Apesar do português se adaptar bem a outras línguas, sabes aquela sensação que o nosso inglês é… Como não pratico tanto… Por exemplo, vou muitas vezes tocar a França e, então, o meu francês, nesta altura e apesar de só ter tido uns três anos de francês no liceu, é fluente, já consigo dar entrevistas bem e já não estranho a minha voz quando falo francês. O inglês, como não vamos lá tocar tanto, fica assim uma coisa meio enferrujada. Não sei, soa-me estranho. Mas gostei muito: gostei, sobretudo, de ter trabalhado com o David Fonseca, acho que ele fez uma produção incrível. Muita malta já me veio dizer que gostou da música: pronto, se gostaram, tudo bem.

 

Em 2015, aceitaste o desafio da revista Máxima e participaste numa campanha onde uma série de figuras públicas masculinas calçaram sapatos de salto alto em defesa dos direitos das mulheres. Que tal foi isso?

Foi das coisas mais difíceis… Neste chão, aqui, talvez não fosse assim tão difícil mas foi na Praça do Camões, que tem aquelas pedrinhas, com os buraquinhos no meio… Ui, eu consegui dar três ou quatro passos e, depois, fui-me logo sentar outra vez. (risos)

 

Bom, tu dizes que a velocidade da vida nos dias de hoje é uma coisa que te assusta – se calhar, se andássemos todos de saltos altos, conseguíamos abrandar.

Talvez fosse uma solução… Eu tento ir um bocadinho contra-corrente, levar a minha vida de uma forma um bocadinho mais tranquila. Às vezes, até mesmo as pessoas que trabalham connosco – os managers e assim, naturalmente, estão a fazer o trabalho deles –, se há muita procura para a nossa música, eles tentam mas nós temos que contrabalançar um bocadinho a coisa, para não ser tão ofegante. Se não, torna-se difícil de respirar: as coisas precisam de respiração, precisam de assentar, precisamos de condições para podermos mostrar às pessoas… A arte não é uma coisa que se atira do pé para a mão – é uma coisa que tem que ser sentida e desfrutada por quem a mostra. Eu tento encontrar aí esse equilíbrio.

 

Para quem não gosta de aviões e de aeroportos, o teu trabalho – com mais de 100 concertos todos os anos –, nos últimos anos, não pode ser fácil…

Não tem sido nada fácil. Não gosto de aviões mas gosto ainda menos de aeroportos… O tempo que perdes nos aeroportos, ficares ali, aquele ar que respiras, ali, fechado… É horrível. No outro dia, vi, num jornal online, uma série de fotografias de como eram os aviões antigamente – como eu tenho saudades que eu tenho desse tempo que não vi… Era maravilhoso.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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