
Lemonade pode viver sem o seu lado visual mas é ele que justifica toda a narrativa destas canções
“You can taste the dishonesty, it’s all over your breath”. “Who the fuck do you think I am?”. “Daddy made a soldier out of me”. “I ain’t sorry”. “Your heart is broken because I walked away”. Em meia dúzia de frases, podia traçar-se o argumento de Lemonade, o (segundo) álbum surpresa (e visual) de Beyoncé. Muito foi escrito e dissecado sobre esse mesmo argumento: será um relato autobiográfico do estado da relação do casal mais lucrativo da indústria do entretenimento? Será Jay-Z um tremendo filho da mãe que anda a trair a Queen Bey a torto e a direito? Quem é a Becky que, ao contrário das restantes mortais, não sofre do síndrome do “bad hair day?”. Pensou-se tanto sobre isso que se esqueceu o resto: Lemonade é uma tomada de posição musical. Um documento musical ímpar. É o disco que leva Beyoncé a um patamar que poucos achavam possível. Por isso, deixe-se para trás o espírito tablóide-cor-de-rosa e olhe-se para o verdadeiro adultério de Lemonade: a (actual) rainha do universo pop enrolou-se com o rock, flirtou com o dancehall, piscou o olho à country e trocou mensagens com o hip hop. Para a sedução ser mais intensa, vestiu-se de distorção, maquilhou-se de electrónica e blues e colocou nos lábios um vermelho forte de quem não tem medo de dizer o que lhe vem à cabeça.
Lemonade pode viver sem o seu lado visual mas é ele que justifica toda a narrativa destas canções: é no filme que se compreende que este é um álbum feito por e para mulheres (também aqui o lado afro-americano poderá estar em evidência mas é um documento que dá poder à mulher, seja ela qual for a sua cor), que vive do Sul que viu Beyoncé emergir (o seu estatuto planetário chegou a um patamar que é fácil esquecer que nasceu e cresceu no Texas), que tanto é das plantações de campos quanto de mansões ou guetto-chic. Também é no filme que se tornam mais claras as origens de boa parte destas histórias, quer através das palavras de Malcom X ou da “citação” de Nina Simone. É construído a partir de pequenas subtilezas – vejam-se as flores secas na passagem por “Sandcastles” – e de brutais declarações que não precisam de palavras – como o desfile de mulheres que envergam fotos dos homens que perderam. Sim, Lemonade pode ser um álbum sobre, de e para mulheres mas gira à volta dos homens. Pode começar em negação, passar pelo vazio e pela apatia, mas acaba em redenção. Pode falar de uma relação à beira do fim mas mostra Blue Ivy e Jay-Z – de imagens do casamento à própria gravidez. Isto vindo da mulher que sempre teimou em não falar, publicamente, da sua vida pessoal… Pode parecer “irrelevante” mas Lemonade surge assinado por Beyoncé Knowles Carter.
Lemonade também é um desfile de “quem é quem” na constelação musical actual: da produção de Diplo à (imparável) participação de Kendrick Lamar em “Freedom” ou The Weeknd em “6 Inch”, passando por James Blake (a fazer o que sabe fazer melhor) na balada synth de “Forward” ao murro no estômago que é cortesia de Jack White em “Don’t’ Hurt Yourself”. O disco vive dos homens mas, no filme, as personagens “secundárias” são todas mulheres, de Serena Williams a Winnie Harlow, com a explicação do título nas palavras de Hattie White, no seu 90º aniversário. Os poemas são de Warsan Shire mas é Beyoncé – em toda a sua plenitude – que enche os olhos. A Beyoncé completa, que tanto chama à imagem os pais, quanto o marido e a filha.
Que não restem dúvidas: em 2016, nenhum outro artista poderia fazer algo assim. Não se fala, apenas, da surpresa. Fala-se da dimensão. Da variedade. Do poder. Da intensidade. Beyoncé sabe disso – e não será à toa que ela afirma “I’m just too much for you”.