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You Can’t Win, Charlie Brown: “a orquestra das três cordas”

You Can’t Win, Charlie Brown: “a orquestra das três cordas”
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São seis e têm três álbuns: tantos quantas as cordas de uma guitarra que os acompanha desde sempre.

 

Dizem que Marrow, o álbum #3, é o seu momento de aventura, o grande salto para um desconhecido que os levou, até, a mudar o modus operandi da banda. Mas há coisas nas quais os You Can’t Win, Charlie Brown não mexem: a essência de família que está inerente à sua existência e o espírito de comunidade sem o qual parecem não saber viver. Como a personagem de Schulz, o sexteto de Lisboa nunca se dá por vencido e o passar dos anos só os tem tornado cada vez mais semelhantes. Pelo menos no cabelo. Dizem eles.

 

Os You Can’t Win, Charlie Brown não andam nestas lides há dois dias: chamaram a atenção em 2010, na final do festival Termómetro, passaram pelos Novas Talentos Fnac e editaram o primeiro EP pela (então) Optimus Discos. Na verdade, os You Can’t Win, Charlie Brown começaram ao contrário de muitas bandas. “Esse início, com o EP, foi o tónico para o início da banda”, recorda Afonso Cabral, um sexto do colectivo. “Já não sei exactamente como é que isso aconteceu mas sei que o Luís [Costa], o nosso guitarrista, falou com o Henrique Amaro [radialista da Antena 3, importante divulgador de música portuguesa e responsável pela selecção destas edições, que, agora, respondem por NOS Discos]. Surgiu logo a possibilidade de fazermos um EP. Ao contrário da maior parte das bandas, que dá concertos e, depois, grava qualquer coisa, começámos por gravar sem termos tocado juntos uma única vez. Gravámos aquele EP, em casa dos meus pais, com dois microfones, tem um som… Na altura, achava que tinha um som horrível: na verdade, tecnicamente, tem um som horrível mas, há pouquíssimo tempo, fui ouvi-lo e achei imensa piada ao som lo-fi daquilo. De facto, é um processo um bocado estranho – começar logo assim, sendo uma banda com ilustres desconhecidos. Felizmente, a seguir, acho que o nosso percurso foi sempre passo a passo, com cuidado”. Nessa altura, os YCWCB eram, apenas, três elementos: Afonso, Luís e Salvador Menezes. João Gil, que se junta ao diálogo, no entanto, já inclui a formação na fase da gravação do primeiro longa-duração, Chromatic, de 2011. Por isso, acrescenta que esse disco também “ainda passou por casa dos teus pais”. Sim, os primeiros esqueletos do álbum de estreia do grupo foram gravados em casa – mas há histórias para contar antes disso.

 

Os You Can’t Win, Charlie Brown nasceram, de parto natural, em 2009. Nasceram de uma vontade de fugir ao formato fixo de uma banda – onde cada elemento toca um só instrumento. Nasceram em formato trio e, sem darem por isso, estavam, em 2010, na final do Termómetro, importante festival-competição de bandas nacionais, criado por Fernando Alvim e por onde passaram, entre outros, os Blind Zero, Silence 4 ou Ornatos Violeta. “Foi um momento importante: éramos uma banda recém-formada e tivemos logo ali um público grande, [a 30 de Janeiro, na 15º edição do festival] na LX Factory. Foi bom para aprendermos uma data de coisas. Ainda há pouco tempo vi fotografias e é uma banda que não tem nada a ver com a banda que é hoje em dia, não só musicalmente mas visualmente. Até tínhamos uma rapariga a tocar violino – [isso] deve ter acontecido em dois concertos e esse foi um deles”, recorda Afonso. “O Salvador de poncho”, atira João. “Eu estava de fato e gravata – parece outra história completamente diferente. Mas foi bom para aprender: foi uma noite super divertida. E longa… lembro-me que acabou muito tarde”, conclui Afonso.

Começaram trio mas estabeleceram-se sexteto: sem violino. Além de Afonso, Luís, Salvador e João, os YCWCB ficam completos com David Santos e Tomás Franco de Sousa. Afonso e Salvador são primos, assim como Tomás, Salvador conhece João desde sempre e David partilhava, com a restante banda, uma série de pontos em comum – e assim nasce a comunidade que, hoje, é conhecida por You Can’t Win, Charlie Brown. “A questão de sermos uma família e de sermos amigos, de já nos conhecermos há muito tempo, é a razão pela qual nos convidamos uns aos outros para tocar”, esclarece Afonso. “É uma comunidade Charlie Brown acima de tudo porque temos uma boa relação de amizade e pessoal. Isso foi sempre mais importante do que o tipo que toca melhor guitarra ou berimbau”. Perdão: berimbau? “Sim, berimbau. Isso torna tudo muito mais fácil: já nos conhecemos, já sabemos como pensamos”, conclui. João vai mais longe: “Ao fim de três discos e de não sei quantos EPs, já conseguimos chegar a um ponto sem qualquer pudor, conseguimos falar e dizer as coisas na cara uns dos outros, sem nos magoarmos. Temos a relação mais saudável de trabalho que eu conheço”. Afonso: “E ele toca em muitas bandas [João integra, por exemplo, os Diabo na Cruz]. Eu não toco em muitas bandas – se ele diz isso, é porque é verdade”.

A família YCWCB, com Chromatic, é também um dos primeiros ramos de uma outra árvore artística, a Pataca Discos, responsável igualmente pela edição de Diffraction/Refraction, que chegou às lojas em 2014. Na Pataca Discos, etiqueta e congregação pensada e criada pelo músico e artista visual João Paulo Feliciano, alinham, entre outros, Bruno Pernadas, Benjamim ou They’re Heading West. Conviver com outros músicos – em plena harmonia e constante colaboração – foi, segundo Afonso, “muito estimulante. Uma experiência com que aprendi imenso foi o primeiro disco do Bruno Pernadas [How can we be joyful in a world full of knowledge, de 2014] – acabei por estar presente em boa parte das gravações e foi uma enorme lição para mim. Milhares de pautas espalhadas por todo o lado… Nenhum de nós sabia o que ia acontecer, até aquilo estar acabado. Também participámos em coisas dos They’re Heading West, onde aprendemos como preencher tudo com uma simplicidade dificílima – teres uma canção completamente cheia onde há pouca coisa a acontecer. Tem sido muito enriquecedor porque continuamos a estar com essa malta toda”, assume. De certa forma, os YCWCB, porém, parecem não escapar a essa existência onde a colaboração é permanente. Desde 2015, têm o seu quartel general no Haus, complexo lisboeta composto por estúdio e salas de ensaios. Como vizinhos, surgem, por exemplo, os Linda Martini. Foi no Haus que Marrow, o terceiro álbum dos YCWCB cresceu, produzido por Fábio Jevelim e Makoto Yagyu, ambos elementos dos PAUS. As misturas ficaram ao cuidado de um parceiro de longa data, Luís Nunes aka Benjamim. Mas já lá vamos.

 

Entre-se, novamente, na máquina do tempo e viaje-se até 2009 e à criação da tal banda que queria contrariar a lógica do formato fixo. Esses sonhos podiam surgir repletos de criatividade no “papel” mas, na prática, não eram as melhores opções. Segundo Afonso, a génese dos You Can’t Win, Charlie Brown, surge, “principalmente, do facto de sermos de uma geração que faz música em casa, com um computador, que pode gravar as coisas todas que quiser. O nosso ponto de partida era assim: cada um fazia quase uma canção inteira em casa e, depois, adaptávamos consoante aquilo que fazia sentido para a banda”. Só que, depois, tinham que transpor tudo isso para o palco – o que não era fácil. “Mesmo no primeiro disco ainda havia muito essa coisa: numa música, toco baixo, noutra músico toco guitarra, noutra música toco piano. A partir do Diffraction, a coisa começa a ficar um bocado mais fixa e percebemos quem fazia o quê melhor – não valia a pena estarmos ali constantemente a trocar”, assume Afonso. “Até porque, depois, em palco, isso torna-se um problema”, confessa João. “O Afonso toca baixo numa música, eu noutra, o Salvador noutra – isto, em concerto, não é tão giro quanto na sala de ensaios porque podes perder muito tempo e uma quebra num concerto pode ser a morte do artista, podes ter um público que se desinteressa logo. As coisas têm que ser pensadas nesse aspecto”, continua. “Agora, tentamos minimizar essa questão da troca dos instrumentos”, conclui Afonso. No entanto, nem tudo se tornou assim tão mais fácil nos YCWCB: afinal de contas, trata-se de seis pessoas, seis vidas, seis actividades díspares, nem sempre fáceis de reunir numa só sala. “Gosto de dizer que é fácil mas é complicado”, desabafa João. “Às vezes, se calhar naquele dia que está mais frio, custa sair de casa mas depois, quando chego lá, aquilo é muito bom – e isso facilita, mais para a frente, a marcação de ensaios. Alguns têm trabalhos diários, outros têm outras bandas, outros tocam aos fins de semana, outros fazem isto e outros fazem aquilo… Às vezes, pode ser um pouco complicado. Mas acho que, também nisso, já conseguimos chegar a uma boa forma”. “Aprendemos a gerir a coisa mesmo que não estejamos todos presentes”, completa Afonso. “Vamos avançando com o trabalho: se um não pode ir num ensaio, depois vem e apanha. Tirando os momentos mais cruciais, em que temos que ensaiar um disco novo ou temos um concerto muito importante e queremos prepará-lo muito bem, a verdade é que é raro estarmos os seis numa sala de ensaios”.

Uma dessas raras situações aconteceu no Outono de 2012, quando os YCWCB responderam ao repto lançado por Pedro Ramos (radialista da Radar e organizador das Black Balloon), para recriarem Velvet Underground & Nico, na edição #9 das festas que decorrem no Lux-Frágil, em Lisboa – mais de quatro décadas volvidas da edição do mítico álbum. “Na verdade, preparámos esse concerto como se fosse um disco, não como se fosse um concerto. Era um disco e, precisamente pela dificuldade de estarmos os seis juntos, andei com um portátil e um gravadorzinho, a ir a casa de cada um deles, gravar a parte que eles fariam naquela música… Temos o disco todo gravado, mal gravado!, como se fosse uma pré-produção. Depois, foi chegar à sala de ensaios e ensaiar aquilo que toda a gente já sabia que ia fazer”, recorda Afonso, com entusiasmo. Vivia-se, então, Outubro de 2012 e, segundo João, “correu muito bem: por acaso, correu muito bem”. “Foi um bom processo, temos que repetir um dia”, acrescenta Afonso. “Nós temos usado métodos diferentes de trabalho. Temos experimentado várias formas de trabalhar, de disco para disco: nas gravações, na forma como os discos têm sido gravados”, analisa João. Marrow, o terceiro álbum, que chegou às lojas a 7 de Outubro de 2016 não fugiu à regra.

 

Em 2011, a conceituada Les Inrockputibles aplaudia, sem um pingo de constrangimento, Chromatic, a edição de estreia dos You Can’t Win, Charlie Brown. Comparava-os a projectos como Bon Iver ou Grizzly Bear. O sexteto havia ainda de se atirar à estrada e passar, por exemplo, pelo South By Southwest, onde chegaram a tocar no lounge de um hotel Sheraton, ao mesmo tempo que viam Tom Morello (o guitarrista dos Rage Against the Machine, actualmente nos Prophets of Rage) a passar. Essa foi, apenas, uma das aventuras dos You Can’t Win, Charlie Brown – haviam de seguir-se outras. Como uma residência no Musicbox, em Lisboa, para recriarem todo o seu repertório, em 2014. Chromatic pode ter sido a apresentação, Diffraction/Refraction a confirmação mas, para o sexteto de Lisboa, a grande aventura surge com o terceiro álbum. “Do primeiro para o segundo disco, foi consolidar aquilo que tínhamos feito”, arranca Afonso. Em Marrow, assume, quiseram sair “um pouco para fora de pé, experimentar um estilo um bocadinho diferente e criar as canções de outra forma”, sem repetir “a forma e o processo que tínhamos feito. Costuma dizer-se que o segundo disco é muito difícil mas achei muito mais difícil imaginar qualquer coisa para este terceiro do que para o segundo. No primeiro ainda havia muita coisa inacabada: estou muito orgulhoso do primeiro disco mas sentíamos que podíamos fazer aquilo de outra forma e melhor e foi isso que fizemos no segundo. Mas, depois desse segundo, isto estava esgotado – para onde é que nos viramos? Por isso, o terceiro disco é a aventura, a viagem, o desconhecido”, confessa Afonso.

 

Tudo, em Marrow, foi diferente. Quando surgiram, os You Can’t Win, Charlie Brown foram descritos como indie e ambientais mas carregavam, na sua motivação, uma componente folk e electrónica. O terceiro álbum leva tudo mais longe: “Pro Procrastinator” tem um imenso espírito rocker mas “In The Light There Is No Sun” é uma espécie de marcha melancólica e “Frida” apela aos blues… O facto de, pela primeira vez, terem trabalhado de forma presencial, os seis reunidos numa só sala, acaba, também, por traduzir-se numa estrondosa densidade minimal. “Sim, foi por isso, aliado ao facto de não termos querido exagerar tanto no lado estúdio do disco, [não quisemos] somar muitas, muitas camadas”, descreve Afonso. “Quisemos fazer uma coisa que pudéssemos reproduzir ao vivo e que fosse tão fácil de fazer como foi construir aquelas músicas em ensaio, que não houvesse assim tanta coisa que saísse do que se passa na sala de ensaios – com menos coisas feitas por máquinas e mais coisas feitas por nós”, completa João. Pode ser o primeiro álbum cujo título não apela à ideia de luz (depois do evidente Chromatic e Diffraction/Refraction, que se traduz em efeitos ópticos) mas a penumbra melancólica continua presença estabelecida. “Nunca pensámos na relação entre a luz e as canções. O que aconteceu, no caso dos títulos dos dois primeiros discos, é que tínhamos as canções feitas, os discos feitos, mostrávamos ao Pedro Gaspar, que é o responsável pelo nosso artwork desde o início, e ele desenhava qualquer que aquela música lhe sugeria. E nós, a partir do desenho dele, pensávamos no título para o disco. O processo tinha sido sempre este e, pelos vistos, de facto, há aí uma relação com a luz, da qual nunca me tinha lembrado, até agora, mas que, no fundo, deve estar lá”. Seguindo a relação intrínseca entre a imagem da capa e o título do álbum, então, não restam dúvidas que este “marrow” não tem nada de vegetal (ainda que seja uma das traduções possíveis). “De facto, é medula, não é o vegetal. Mas podia ser”, sorri Afonso.

 

Desde 2009, muito mudou nos You Can’t Win, Charlie Brown. Mas há coisas às quais se mantêm fiéis. Uma delas? Salvador continua a tocar numa guitarra com, apenas, três cordas. “Foi uma guitarra que ele encontrou em casa, acho que pertencia à irmã dele e, na altura, tinha três cordas partidas. Já lá vão uns 15 anos e ele nunca substituiu as cordas que faltavam. Desde então, tem sido gravada em todos os nossos discos”, diz Afonso. João vai mais longe, assumindo que é o “o instrumento mascote” do sexteto. “O “mascordas””, chama-lhes Afonso. Fala-se de Afonso e de Salvador e confesse-se aquele que foi o primeiro sintoma daquilo que hoje se conhece como You Can’t Win, Charlie Brown: tinham 13 anos e pegaram num leitor de cassetes, com um microfone de cada lado, para gravarem versões dos Cake, banda californiana em actividade desde o início dos anos 1990. “Gostava de saber onde é que isso está – não faço a mais pequena ideia! Mas deve haver algures, uma cassete, na cave dos pais dele, connosco a cantar por cima do Fashion Nugget [álbum de 1996]”.

Charlie Brown – criado nas personagens Peanuts – é um menino que nunca desiste (apesar do que estes lisboetas lhe possam ter vaticinado). Apesar das inseguranças e das agruras da vida, Charlie Brown nunca se dá por vencido. Será que os You Can’t Win, Charlie Brown também são assim? Segundo Afonso, “acho que sim, acho que corresponde às nossas personalidades. As vidas difíceis”. O passar dos anos, aliás, está a torná-los, cada vez mais, Charlie Brown. Segundo Afonso, pelo menos, em termos capilares: “Metade da banda já lá está. Estamos cada vez mais parecidos com o Charlie Brown”. Sem nunca baixar os braços. Até à medula.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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