Ele e as pessoas
É estranha a dicotomia criada entre Benjamin Clementine e o seu público – ou, pelo menos, o público que foi até ao Coliseu dos Recreios para o seu regresso aquela sala, agora, pela primeira vez, em nome próprio. Não é possível passar incólume à emoção transmitida pela música de Clementine: se as letras são verdadeiros tratados de poesia, as melodias delicadas deixam brilhar a sua voz. Ampla. Imponente. Ele parece, de alguma forma, nunca saber lidar com a devoção que encontra. O público, por outro lado, não se esquiva a manifestar essa mesma devoção e todos os espaços parecem oportunos para um ou outro grito, uma ou outra declaração. Muitas fotos foram tiradas sem pudor – mas a imagem distante do palco, só muito pontualmente iluminado, daquele gigante de sobretudo escuro, nunca representará o que, efectivamente, se viveu ali.
A longa fila que se direccionava para as portas do Coliseu confirmava o que já se sabia: esta era uma noite ganha à partida. Aos poucos, desde que se estreou em Portugal, no Super Bock Super Rock, de dia e no segundo palco do festival, o fenómeno estava criado. Em Novembro, nesta mesma sala, por ocasião do Vodafone Mexefest, a multidão tinha aumentado muito e o reconhecimento mundial também. Por essa altura, At Least For Now já tinha sido premiado com o Mercury Prize. A consagração em Portugal começou em Lisboa, ontem, dia 1 – seguir-se-á o Porto e Coimbra. “I Won’t Complain”, poderia dizer Benjamin Clementine. Disse mesmo.
“It’s a wonderful life”, entoou, logo no arranque do concerto. Durante perto de duas horas, foi isso que aconteceu. Para trás, ficam todas as agruras da biografia de Clementine tantas vezes referidas, dissecadas e, na verdade, pouco importantes para a magia da sua voz. O que importa, realmente, é o que ele vive agora e permite observar. Parece ser tudo a preto e branco mas o que se escuta são verdadeiras explosões de cor. A ascendência da sua voz, a intensidade do seu piano – que mais se assemelha a uma extensão do seu (já) longo corpo –, as oscilações determinantes das suas palavras desgarradas, que, ao mesmo tempo que soam a verdadeiras convenções literárias, em formato de sonho clássico, parecem ter como único propósito de existência o serviço da sua interpretação. Nesses momentos, Clementine é de uma imponência e de uma segurança inigualáveis. Porém, quando a música se “cala”, o gigante torna-se um ser frágil, que sussurra. Declarou-se assoberbado, foi conversando, mas sempre com o mesmo embaraço com que nunca deixou o seu sobretudo. Ainda que reconhecendo a noite quente que se fazia sentir.
Benjamin Clementine é um herói improvável. Nada no seu percurso podia fazer crer que estaria onde está hoje. Nada – a não ser a sua obra expressionista que, em Lisboa, surgiu acompanhada por um grupo de cordas, composto por violinos, viola de arco, violoncelo e contrabaixo (além da bateria). Se é certo que dão uma nova abordagem a momentos como “Adios”, a verdade é que a música de Clementine precisa, apenas, dele. A nu, “London” teria sido, igualmente, perfeito e “Cornerstone” foi disso prova. Um só foco de luz no palco, a metáfora perfeita para Benjamin Clementine. É ele o foco. Nada mais é necessário. Nem tão pouco que ele perceba o que (não) está a cantar – como quando ensaiou a viagem tosca a “Tive Razão”, de Seu Jorge. Quase duas horas de concerto, com dois encores, uma bandeira portuguesa e muitas explosões verbais de devoção. É ele o foco porque esta não é música para ser “vista”. É para ser perseguida com todos os restantes sentidos. Saboreada em “Winston’s Churchill’s Boy” ou inspirada em “St-Clementine-on-Tea-and-Croissants”. Também é reverência a obras alheias, como “Riverman”, de Nick Drake, que colocou o derradeiro ponto final no serão. Clementine pediu que se acendessem as luzes – e o público ficou mais iluminado que o artista. Estava encenado o cerimonial perfeito para o “adeus” em dueto. Ele e as pessoas. Restou o silêncio imenso que a sua voz contém. “It’s a wonderful life”. Pelo menos ali, foi.