Poder. O poder da voz – e de todas as vozes – e o poder da música. O poder do futuro. Muito mais que uma lição de história, a derradeira noite no Vodafone Paredes de Coura foi uma escola da vida.
Há algo de genuinamente religioso num concerto de Patti Smith. Não tem a ver com crenças ou correntes mas com aquilo que a religião, na sua génese e premissa fundamental, deveria significar – aquele espaço que transcende a existência, que instiga a uma viagem às duvidas e convicções que, numa base diária, procuramos recusar ou comprimir. Num concerto de Patti Smith, as orações surgem em formato-canção mas também em palavras disparadas com a intensidade de uma homilia de poder, de esperança, de amor. Deveria ser sempre esse o verdadeiro poder da religião. E, no final do concerto de Patti Smith, no derradeiro dia do Vodafone Paredes de Coura, naquele instante em que se procura controlar o inexplicável sorriso que teima em não abandonar os rostos, a certeza com que se fica é que, no espaço de pouco mais de uma hora, todos fomos personagens de um verdadeiro milagre. O milagre que nos volta a fazer acreditar que tudo é possível. Que o futuro pode estar à distancia de uma canção. Que o poder está aqui. “Don’t forget it, use your voice”, havia de dizer Patti Smith no final de “People Have The Power”, o hino que abria o seu regresso a Portugal e a sua estreia em Paredes de Coura. Nos minutos que se seguiram, a sua voz foi a nossa voz que foi a sua voz que voltou a ser a nossa voz. Mesmo depois da sua voz se calar nos nossos ouvidos – e assim permanecerá durante muito tempo –, ela ecoará.
A certa altura, depois de já ter atirado ao ar o gorro que, na entrada em palco, cobria a sua cabeça, pede desculpa porque tinha um cabelo na boca. Era um cabelo branco, vai completando. “Na verdade, é valioso”, conclui. E é mesmo, porventura, representando, até, aquilo que a mulher que mudou o panorama do rock em 1975, quando publicou Horses, representa: o valor de um cabelo branco é o valor de uma vida vivida. E poucos a viveram como Patti Smith. Ali, na Praia Fluvial do Taboão foi toda essa vida que ela apresentou, quer quando viaja pelas suas canções (em “Ghost Dance”, agitaram-se os braços para afastar os (maus) espíritos, em “Beneath The Southern Cross” celebraram-se aqueles que se mantêm vivos nas memórias) que pelas dos outros – em mais uma lição de história – de “Beds Are Burning”, dos Midnight Oil, passando por “Are You Experienced?”, de Jimi Hendrix, ou pelo medley que une “I’m Free” e “Walk On The Wild Side”, com Rolling Stones e Lou Reed a parecerem filhos da mesma mãe. A mensagem em todas as ocasiões, no entanto, é a mesma – é preciso fazer e acreditar. Fazer para acreditar. “We are fucking free and the future is now”. Não há verdade mais absoluta.
Eis a mulher que tem arte em todos os seus fôlegos. A mulher que está pregada na história da música mas que é celebrada enquanto escritora, poetisa, activista. Mulher. A mulher que é mãe e avó mas que nunca perdeu o espírito ansioso da descoberta presente no olhar de uma criança. A mulher que teve o privilégio de descobrir duas almas gémeas mas que não amargou na sua perda. Antes comemora as suas vidas, como quando recorda “Because The Night”, a letra escrita para a música de Bruce Springsteen, numa (longa) noite em que ficou fechada em casa, com o frenesim de Nova Iorque do outro lado da porta, a aguardar o telefonema daquele que se viria a tornar seu marido, Fred “Sonic” Smith.
No fim de semana em que se assinalavam os 50 anos de Woodstock, Patti Smith ainda havia de festejar Neil Young em “After The Gold Rush”, com teclas delicadas e voz suave, num momento que poderia ter sido ainda mais sublime não fosse o silêncio sepulcral da Praia Fluvial do Taboão ter sido contaminado pelo início do concerto do Palco Vodafone.fm (Kamaal Williams, gostamos de ti mas não naquela altura!). Para o final, claro, ficava guardado “Gloria”, onde todos acabam a agradecer os seus pecados porque são eles que moldam o carácter, a personalidade e a vida. É em “Gloria”, parte do álbum de 1975, que está, logo expressa a escola de vida que Patti Smith carrega: “The words are just rules and regulations to me” e é aquilo que fazemos das palavras e das regras que faz a diferença. Foi o que Patti Smith fez com a sua vida e é isso que nos faz acreditar ser possível fazermos com a nossa. Há muitos que lhe chamam madrinha do punk, artista incontornável, ícone e símbolo de uma geração. Qualquer definição, no entanto, vai ser parecer redutora. Talvez o melhor seja, realmente, chamar-lhe, apenas, Patti Smith. Esse lugar nunca vai pertencer a mais ninguém.
Considerado, por João Carvalho, da Ritmos, um dos melhores cartazes de 27 edições do festival, em 2019, o Vodafone Paredes de Coura recebeu, em média, 26 mil pessoas por dia, com os passes gerais esgotados e a lotação completa nas duas primeiras datas. Na despedida, no entanto, depois do misto de psicose dançável com aula de ginástica que foi o concerto de Mitski e da descarga selvagem de Freddie Gibbs & Madlib ou da experimentação jazzy de Kamaal Williams, havia de ser Brett Anderson o rei da noite, o homem que bailou e seduziu a última enchente do Palco Vodafone. Cada gota de suor que pingava da sua camisa tinha um misto de paixão com dedicação e encontrar algo assim numa banda com tanta história é, no mínimo, encantador.
A história, às vezes, pode parecer demasiado distante, encaixotada em volumes empoeirados. A vida, essa, é o amante que nos acompanha sempre e que pode ser constantemente alterada. Antes de se regressar a Paredes de Coura, em 2020, entre 19 e 22 de Agosto, porém, as lições de história dadas na despedida desta 27ª edição serão a nossa escola da vida. Obrigada, Patti Smith, pela lição de história mas um obrigada ainda maior por deixares que a escola da vida que surge nestas canções não precise de matricula nem dependa de vagas. O sorriso, o tal que vamos tentando controlar, ainda não desapareceu e essa poderá ser a maior lição… de toda esta história.