Mike El Nite: “Rirmo-nos de nós próprios é fundamental”
Há um novo super-herói na música portuguesa. Os seus poderes? O sarcasmo e o humor. A sua arma? O rap.
A persona apela ao universo da fantasia mas as rimas disparadas por Mike El Nite surgem repletas de realidade – uma mixtape e um EP depois, em 2016, estreou-se nos álbuns com O Justiceiro. A vontade de colocar o dedo na ferida é, apenas, uma das formas de expressar a sua justiça. As outras? São um sem número de referências à cultura nacional e à sociedade do século XXI, em observações irónicas e afiadas. Michael Knight podia ter o Kit mas Mike El Nite não precisa de parceiro: na sua senda, o rap é mais do que suficiente.
Os primeiros momentos de O Justiceiro deixam claro o raio de acção de Mike El Nite: escuta-se a voz de José Hermano Saraiva, numa citação do programa “Horizontes da Memória”. Não é a primeira vez que o passado da cultura portuguesa é alvo da referência de Mike El Nite – em “Mambo Nº1”, por exemplo, do EP Vaporetto Titano, também se recordava o “Playback” de Carlos Paião. Em O Justiceiro, “Santa Maria” traz a banda com o mesmo nome de novo à vida, com a viagem a “Eu Sei, Tu És”. “Temos que pensar que o improvável pode ser provável. Não temos que ter medo de juntar coisas. É no momento em que se juntam coisas improváveis que nascem coisas surpreendentes”, explica Mike El Nite. Num determinado sentido, é um pouco esse, também, o resumo da sua história – do improvável, nasceu algo surpreendente.
Nasceu Miguel Caixeiro. Cresceu em Telheiras. Descobriu a música e rendeu-se a ela com ritmos de rock e metal mas percebeu que o rap fazia parte da sua essência quando ouviu Eminem ou Mind Da Gap. Porém, as suas primeiras experiências criativas não correm de feição. “A questão é que, quando comecei a fazer coisas, era mesmo por instinto, puro, quase uma necessidade fisiológica – queria expressar-me e comecei a fazê-lo mas não sabia muito bem onde é que aquilo ia parar. A verdade é que tive alguns momentos em que me cruzei com outras pessoas da mesma onda e não havia pontos de ligação – pelo contrário, havia pontos de discordância. Isso fez com que me afastasse um bocado da cultura em si”. À distância, Miguel considera que, de certa forma, está um pouco “no meio” – não é da geração do boom do hip hop mas também não acabou de começar. Como se não bastasse – como referiu numa entrevista – sentiu-se, a determinada altura, no meio num outro aspecto: nem era beto nem era mitra. Ao invés de considerar todos esses potenciais obstáculos como dificuldades, encara-os como pontos a seu favor. “É assim, cá andamos no limbo, no qb. É um bocado assim mas acho que é bom porque dá-nos ambas as perspectivas e faz um produto final mais rico – quanto mais informação, melhor. Na parte criativa, para nos expressarmos, acho que nos dá uma certa vantagem em relação a alguém que só vê um lado das coisas”.
Da mesma forma que o rap é fundamental na essência de Mike El Nite, a crítica e a intervenção sempre estiveram no âmago de Miguel. Em criança, frente à televisão, os intervalos e as emissões publicitárias, invariavelmente, acabavam com a sua conclusão: “aldrabão”. “Esse lado crítico é natural em mim mas também foi incutido pelos meus pais, que sempre foram muito interventivos e muito críticos e sempre me mostraram como é que o mundo funciona: “não vejas as coisas só de um lado”, “nem tudo é o que parece”, esse tipo de coisas. Por isso, muito rapidamente, as televendas deixaram de me enganar”. Música e intervenção sempre habitaram a casa de Mike El Nite: o seu pai pertenceu à Brigada Victor Jara, importante colectivo português do pós-25 de Abril. “Nessa altura, eu ainda não tinha nascido – e ainda faltava bastante para nascer – mas o meu pai mostrou-me muita música, entre ela, música de intervenção”. As lições de Joaquim Caixeiro não se ficaram pela cultura da música: “Sempre me disse que, quando as pessoas têm a responsabilidade de ter um microfone na mão e quando há pessoas que estão dispostas a ouvir-nos, temos o dever de não ser só um entretenimento, de fazer mais qualquer coisa”, recorda. E esse “mais qualquer coisa” pode ser transmitido de forma menos habitual – falar de assuntos sérios não tem que ser feito em jeito solene. Por isso, o recurso ao humor foi, igualmente, uma lição paterna. “O meu pai também tem um lado humorista – durante anos, ele fez stand up comedy em bares e o projecto dele [Quinzinho de Portugal] também tem muito humor. O humor é uma coisa muito engraçada porque pode ser uma coisa muito séria, um assunto muito sério”, conclui.
Mike El Nite editou O Justiceiro em 2016 mas a vida podia não o ter trazido de volta o rap. Depois da frustração encontrada nas primeiras experiências, em 2006, assiste à actuação dos Daft Punk, na Zambujeira do Mar – e compreende que também se poderia expressar, com outro género. “Descobri uma cultura com a qual estava automaticamente mais familiarizado: os meus pais tinham um bar e a música electrónica e a vida nocturna tinham sido sempre coisas que estavam presentes na minha vida, embora não as tivesse, ainda, descoberto. Foi fácil integrar-me e sentir que lhe pertencia”. Mas, para quem tem o rap gravado no seu ADN, o regresso era inevitável. “Agora, acho que estamos numa fase da sociedade em que as pessoas já podem dizer que não são só isto ou só aquilo, em que podemos dizer ou fazer o que quisermos, a liberdade de expressão é uma coisa muito trendy, hoje em dia. Acho que é a altura ideal para um projecto como o meu – que não é só isso mas que, na sua génese, é muito um quebrar de preconceitos e barreiras”.
Em 2012, surge a primeira mixtape, Trocadalho do Carilho. “Digamos que, até aí, foi um bocado o estágio. Já não fazia rap há muito tempo e estava a fazer de forma mecânica, porque tinha que fazer e tinha que voltar à forma antiga ou à nova forma, a recuperar daquilo que não me tinha esquecido mas que estava, digamos assim, a cheirar a mofo. Tive que limpar o armário”. Porém, a grande mudança dá-se a partir de 2013, com o EP de estreia, Vaporetto Titano. “[As coisas mudaram] a partir desse momento: tinha um tema, tinha um EP, uma coisa que ia lançar, que não era partilhada, que era minha mesmo, com colaborações mas com o meu cunho”. “Mambo Nº1” é o agente da grande mudança. “Na verdade, só depois de a música ter o impacto que teve é que aquilo teve o efeito em mim de “ok, estamos a ir por um caminho, vamos lá trabalhar isto mais a sério”. Sem dúvida que, depois dessa música, criou-se uma ideia de mim e, logo, eu também criei uma ideia de mim diferente, que me permitiu crescer mais e trabalhar mais. Acho que isso se tem visto ao longo do meu trabalho: as coisas estão a ficar mais sólidas, mais pensadas, tenho mais controlo naquilo que faço”.
No final de 2015, passou, em nome próprio, pelo Vodafone Mexefest (onde regressa um ano depois) mas, na sua página de Twitter, escreveu que 2016 seria o ano do take-over – e o caminho começou a ser confirmado com a edição do primeiro longa-duração, O Justiceiro. A ligação ao título da série do qual “roubou” o seu alter-ego é evidente mas o seu olhar vai além da pequena caixa que mudou o mundo. “É um álbum de apresentação, é o meu primeiro disco, LP, de longa-duração; chama-se O Justiceiro porque é a introdução aquilo que eu sou, nas várias perspectivas: música, política, ideias… Quis fazer justiça a várias coisas – espero ter conseguido”. O lado interventivo surge tatuado de um profundo sarcasmo mas Mike El Nite não considera que seja essa a sua língua-mãe. “Diria que me safo… Também gosto da ironia e do humor: rirmo-nos de nós próprios é fundamental. Sarcasmo, ironia, rirmo-nos de nós próprios, é essencial para podermos fazer rir os outros. Se tivermos medo de nos rirmos de nós próprios ficamos muito “tight”, muito apertados, muito com medo do que as pessoas acham. Devemos descontrair: às vezes, ao analisarmo-nos a nós próprios, estamos a pôr as pessoas a pensar nelas próprias também e as pessoas revêem-se nisso. Cria-se mais cumplicidade”. É essa a tua justiça? “ Esse é o meu lado justiceiro – não só mas também. Também a nível musical, a nível da cultura, do que é se pode ou não fazer sendo de uma determinada cultura… Isso para mim também é fazer justiça às coisas. Basicamente, quis fazer justiça não só a mim próprio como à música de que gosto, como a alguns preconceitos que existem e que quis desmantelar. Quis dar essa veia interventiva”. No entanto, parar é morrer e Mike El Nite assume que esta fotografia, em breve, será diferente: “Outros capítulos se seguirão e nem todos serão iguais”, anuncia.
Não se recorda onde leu mas registou na sua mente que nomes com três sílabas são marcantes. Por isso, quando decidiu trocar o seu Miguel de nascença por outro, pariu Mike El Nite. “Esse foi só um dos motivos pelo qual escolhi este nome – há mais”, arranca: “tem a ver também com o factor super-herói. Cresci muito no imaginário da banda desenhada e dos super-heróis – Mike El Nite é uma persona que, a nível tónico, pode dizer-se em três sílabas mas que é muito mais do que isso, é uma história que vai acontecer ao longo da minha vida”. Por agora, a sua música é a vida mas ainda é difícil viver da música. “Vivo para a música, digamos assim. Pretendo viver disto, as coisas estão melhores do que alguma vez estiveram mas não é estável – não é estável, neste momento. Ainda há muito caminho para percorrer para tornar isto estável. Mas estou a trabalhar nesse sentido e acredito que quando as pessoas querem mesmo uma coisa, se trabalharem o suficiente, essa coisa acontece”.
Os sonhos, entretanto, vão-se concretizando: quando Kendrick Lamar foi confirmado no 22º Super Bock Super Rock, afirmou que adorava actuar no mesmo dia – o que acabou por acontecer, a 16 de Julho de 2016. O que é que se segue, agora, Miguel? “O que vier: i’m ready. Ambiciono palcos maiores, espectáculos mais completos a nível audiovisual, continuar a provar às pessoas que desacreditam no meu trabalho que “take your time”, oiçam isto. Eu gosto mesmo disto e acho que sou bom nisto. Portanto, quero continuar a desmistificar, continuar a surpreender, continuar a fazer boas performances e viver disto – sem dúvida”. Seja feita justiça às suas palavras.