Batida: “Tenho amor por várias coisas ao mesmo tempo”

Que não restem dúvidas: Batida é Pedro Coquenão.
Múltiplos olhares e dualidades de paixões, um estar “aqui” mas também estar em todo o lado – Batida e Pedro Coquenão são um só ser, vivo e indivisível, mesmo quando, em palco, encontra companhia. Batida é música e dança, é festa e inquietação, é Portugal e África. Tudo isto cabe em Pedro Coquenão e tudo isto é Batida, uma recusa total às fronteiras criadas por uma sociedade imperativamente organizada. Se ele tem amor por várias coisas ao mesmo tempo, porquê evitá-las?
Actuou duas vezes em Glastonbury. Remisturou Damon Albarn e subiu ao palco do Africa Express, uma espécie de festival criado pelo líder dos Blur para reunir os ritmos africanos de sempre com os olhares ocidentais do presente. Trabalhou na concepção do mais recente registo dos Konono Nº1, mítico projecto congolês, em actividade desde a década de 60. Editou dois álbuns assinados enquanto Batida. Foi aplaudido por publicações tão universais quanto o Guardian ou a Spin. Mas quem é, afinal, Batida? E que mais esconde Pedro Coquenão?
Às vezes, é difícil acompanhá-lo. De sorriso fácil e simpatia contagiante, o seu discurso é tão complexo quanto a sua obra: não se encerra na mera resposta, antes exerce um verdadeiro ensaio sobre uma inquietação que tinha, necessariamente, que transformar-se num objecto artístico distinto de todos os outros. As palavras são evidentes, os conceitos parecem universais mas, ao mesmo tempo, tudo se assemelha a uma novidade tão grande que deixa um grande ponto de interrogação mental: caramba, como é que nunca ninguém se tinha lembrado disto? Pedro, o senhor que responde por Batida, convida o seu público a embarcar numa tremenda viagem pelo mundo – quer se fale de ritmos, influências, cores ou referências. Pedro, o senhor que confessa considerar que “falar é das coisas mais grosseiras que temos”, embala o seu discurso como assina a sua música – “pessoalmente, se pudesse só dançar ou fazer uma música, uma melodia, preferia, ou ter um gesto… Acho que são muito mais interessantes e profundos do que tanta conversa. Mas foi a maneira que arranjámos para comunicar e sim, às vezes, há palavras, às vezes, recorro a pessoas que são muito boas na palavra mas o ritmo, a dança, essas coisas mais subtis, acabam por ser mais reveladoras e interessantes do que tanta conversa”. É uma longa conversa o que se segue. É difícil acompanhar Pedro Coquenão porque as suas palavras – por grosseiras que lhes chame – conduzem a um sonho que se tornou realidade. Dançar ao som desta conversa foi um prazer – e um privilégio.
Pedro Coquenão nasceu em Angola mas cresceu em Portugal. Porém, ainda que os seus pés estivessem assentes nos subúrbios de Lisboa, eram os arredores de Luanda que lhe palmilhavam os sonhos. ”Fala-se, às vezes, muito desta condição lisboeta, da ligação que tem a África, e eu acho que ela existe independentemente de teres nascido lá ou não. Aliás, acho que África já tinha nascido cá antes sequer de Portugal ter nascido em África. África existe aqui – mesmo que eu não tivesse nascido em África”, começa por explicar. Quando a sua família deixou o continente e se estabeleceu em Portugal, aquela vivência nunca ficou, verdadeiramente, para trás: “Em casa, era impossível não ser afectado por isso: as famílias que vieram de lá para cá não se adaptaram logo. É aquela coisa do emigrante – da mesma maneira que vês os emigrantes portugueses noutros países a cultivarem [a cozinha d’]o bacalhau, aqui era de outra maneira: era haver muambas, era haver conversas sobre o tempo e sobre o espaço e sobre a música e sobre as pessoas, que eram tão diferentes”. De certa forma, foi como se crescesse numa bolha, “onde as conversas eram sobre um outro sítio – na realidade, eu não estava cá”. Chegado à adolescência, e com os imperativos da aceitação do crescimento, “tentas a todo o custo encaixar-te no sítio onde estás: quando começas a ir para a escola, de facto, África não era celebrada, não era uma coisa exibida – havia uma série de complexos, de parte a parte… e tentas a todo o custo encaixar-te. Tentei e encaixei-me, de certa maneira. Mas há uma curiosidade, se calhar, num salto geracional… Pensas: espera, de onde é que vinha mesmo aquela história que ouvi quinhentas vezes, sobre aquele sítio, aquela cidade, aquele sabor, aquela comida?”.
Essas perguntas nunca o abandonaram e tornaram-se sede de maior conhecimento. “Acabei por ter que voltar – primeiro, perguntando e, depois, indo lá mesmo, fisicamente. Mantenho essa ligação até hoje. Recuperei-a, de certa maneira”. A sua curiosidade, porém, nunca se encerrou apenas na cultura ou geografia. Um dia, no quarto de um primo, viu, pela primeira vez, uma mesa de mistura. “Fiquei vidrado: achei aquilo a coisa mais fixe que se podia ter na vida. Tinha os ponteiros a mexer, tinha botões com várias cores, dava para meter várias músicas ao mesmo tempo, ainda ligar a um microfone…”. Como quem não tem cão, Pedro decidiu caçar com gato – se não tinha uma mesa de mistura, começou a fazer as suas primeiras misturas através de dois gravadores… De cassetes! “Apercebi-me que, se metesse fita-cola na cabeça de gravação, podia gravar várias coisas, por cima umas das outras – e tanto aproveitava essa sobreposição de sons como aproveitava para fazer cortes: aquela coisa mesmo de gravar, fazes pausa, andas um pouco para trás na cassete, fazer corte para a próxima música e fazer mixtapes de uma maneira quase flintstoniana – mas era o que havia. Mas sim, diverti-me imenso com cassetes”.
Os primeiros sintomas para o nascimento do projecto Batida surgiram com um programa de rádio, com esse nome, em 2007. Também houve o documentário, “É Dreda Ser Angolano”, produção da sua Rádio Fazuma. Depois de Dance Mwangole, de 2009, em 2012, surge o primeiro álbum internacional de Batida, sucedido, em 2014, por Dois. Mas, afinal, como é que um programa de rádio dá origem a um projecto que faz, desta forma, a ponte entre Portugal e Angola, com escala numa série de outros ritmos? Como é que as tradições de África se conseguem tornar contemporâneas? “A forma mais fácil de explicar é que tenho amor por várias coisas ao mesmo tempo e não vejo porque é que tenho que escolher entre as coisas”, declara Pedro. “Acho que isso é uma necessidade que surgiu pela indústria: tens vários tipos de palcos – o palco de teatro, o palco de dança, o palco da música… Acho que nós, como humanos, somos um bocadinho mais abrangentes do que isso. Não só a fazer como a ter a experiência: não precisamos desse tipo de organização. Pessoalmente, tento contrariar isso porque acho que é uma natureza só comercial e industrial – que existe e tens que lidar com ela, quando vais a um festival. Sempre que posso, tento exercer a minha liberdade e natureza que é gostar tanto de dança quanto de rádio quanto de fazer música quanto de ouvir música quanto de fazer coisas que são minhas quanto partilhar coisas que são de outros”. Foi dentro dessa lógica, dessa forma de estar, que as coisas foram surgindo: “quando fazia rádio, tentava fazer música lá, com amigos – às vezes, acontecia música na rádio; quando fiz um documentário, aconteceu rádio; quando comecei a fazer música, a rádio aconteceu lá… As coisas, às vezes, invertem-se e eu troco um bocadinho os papéis, não vejo muita necessidade de ter que separar. Pessoalmente, não tenho que me preocupar com isso: enquanto conseguir pagar a renda e não tiver ninguém atrás de mim, apetece-me fazer o que me apetece e não ter que me classificar”. Classificações à parte, aqui fica aquilo que é Batida, segundo Pedro Coquenão: “é um nome que eu adoptei, inicialmente, para um programa de rádio que, de repente, se transformou em eu a fazer testes de música enquanto estou a fazer um programa, que de repente vai parar ao palco e que, de repente, eu tenho que compor de uma outra maneira porque não é um programa de rádio no palco, é mais qualquer coisa. De repente, começo a trazer dança, começo a trazer músicos, começo a fazer coisas, a seguir vais fazer um disco outra vez… E as coisas vão sendo feitas assim, vão acontecendo dessa maneira”. Talvez Batida seja, apenas, uma forma de Pedro recriar aquilo que fazia em criança. “Vivi a minha infância com os meus primos, que também tinham vindo de Angola: não tínhamos muito o que fazer, havia um canal [de televisão], dois canais, não havia internet, não havia uma série de coisas que, hoje, nos entretêm, e tínhamos que inventar coisas. Principalmente jantares de família, conseguiam ser muito chatos porque não se passava nada – estava a dar o telejornal ou outra coisa chata e, enquanto não dava [o programa d’]os Marretas, tinha que inventar coisas. Tinha a mania de compor cenas: punha a malta a dançar, fazia coreografias, inventávamos versões, inventávamos teatro e tudo acontecia naquele sítio. Acho que isso é uma coisa muito clássica de criança, até a criança se aperceber do que é ridículo e o que não é, até alguém lhe perguntar “mas, afinal, és o quê? És bailarino ou és cantor?” Até alguém a obrigar a definir, a criança faz o que lhe apetece e, às vezes, abarca essas coisas todas. Tento manter esse lado de criança preservado porque acho que é um lado muito valioso”. Recusando definições, portanto.
Sem tirar o pé do acelerador da magia de criança, em Batida, a música também não é alvo castrações estilísticas. Há kuduro? Há, sim senhor, mas também há Clash, por exemplo. “Em relação à música, o ser humano, por definição, não é coerente, nem tem que ser. Tentas fazer isso quando és adolescente e [queres] mostrar que tens um gosto musical muito bem definido – mas, depois, ouves coisas diferentes em casa: pelo menos, eu era assim. Tinha imensos discos que não assumia nos meus cadernos mas que tinha em casa e, hoje em dia, adoro-os, a todos: percebi que é uma estupidez tentar fazer isso. São fases da vida. Ao fazer música, por necessidade da indústria, da rádio, até dos jornalistas, quando queres explicar, até para as lojas de discos, definir qual é o teu género, é importante que te coloques numa prateleira qualquer, para seres mais facilmente comerciável… Mas, novamente, não é uma necessidade tua: se conseguir pagar as contas dessa maneira, posso ficar menos abastado mas é muito mais confortável e muito mais interessante e estimulante para a minha cabeça do que estar a compartimentar-me”. Batida é, então, um derradeiro exercício da liberdade, só desafiante de “arrumar” para quem perdeu a capacidade – precisamente! –de ser livre. “Tanto fui marcado, quando tinha 8 ou 7 anos, por certo tipo de ritmos que ouvia em casa, através da minha família, quanto, mais à frente, por alguns vinis que fui herdando ou cassetes. Os Clash, sim… Não vejo razão nem tenho como evitar, é impossível. Às tantas, pode parecer estranho e não é óbvio: mas quem é que disse que temos que fazer o que é óbvio? Tens que fazer o que te apetece: se tens várias influências, porque não assumi-las?”. Precisamente.
Em 2004, o colectivo congolês Konono Nº1 apresentou Congotronics, onde, pela primeira vez, revelava uma vontade de alargar o seu espectro a movimentos mais ocidentais – e actuais. Porém, foi apenas em 2016 que esse espírito aventureiro se concretizou efectivamente: com Konono Nº1 meets Batida. Que novidade encerra, para Pedro Coquenão, esta experiência tornada disco? “Novo foi eu estar a trabalhar, criativamente, com as mãos na música, para um outro artista: já tinha feito muito isso, ao longo da minha vida, enquanto pessoa, a fazer rádio, a ser amigo, a tirar fotografias, a fazer vídeos… Sabia o que era isso, pôr a criatividade ao serviço de uma outra pessoa, de um outro artista, de uma outra ideia, mas nunca tinha participado, activamente, na feitura de um disco, com as mãos na massa, como estive neste”. No activo desde a década de 60 do século XX, “partilhar” a música dos Konono Nº1 foi também um acto de coragem. “A dinâmica de um grupo que tem décadas, que é tipo uma família e conseguir chegar ali, sem [me] impor – porque não é muito o meu género –, arranjar ali um lugar, naquela família, ser aceite… O fundador faleceu pouco tempo depois mas já estava fora do processo criativo da banda. Conseguir entrar, perceber o que eu tinha de novo para dar, se era pertinente, se era importante, se não era redundante, respeitar ao máximo o que eles fizeram e, ao mesmo tempo, acrescentar qualquer coisa de novo – parecendo que não, já é um grande malabarismo”. Sem números de trapézio, Pedro tentou “respeitar o que está para trás e acrescentar qualquer coisa que seja bom para eles – e não necessariamente para ti. A experiência humana, ter que lidar com eles… Voltei a viver coisas que associo à minha vida: ter que partilhar um espaço pequeno – que foi a minha garagem –, com uma data de gente e ter que coabitar com aquelas pessoas, literalmente, num espaço curto… Não só criativamente mas também fisicamente, lidar com isso, foi muito fixe: eles têm muitas idades diferentes, têm gerações diferentes lá dentro. Se tudo correu bem, o resultado há-de ser mais eles do que propriamente eu: será cinco pessoas mais o produtor deles original e a minha interferência – portanto, a minha interferência terá que ser uma de sete… Se tudo correu bem”.
Da janela de Pedro Coquenão, a vista abarca o mundo inteiro. Mas o que é que acontece quando é o mundo inteiro a espreitar para a janela de Batida? É isso que acaba por acontecer quando os concertos e os discos dão origem a elogios e aplausos de publicações como a Spin ou Les Inrockuptibles, The Guardian ou All About Jazz. “De repente, estás numa casa que tem uma série de janelas que se começam a abrir. Não me posso queixar: obviamente, é sempre bom ter mais vista, ter mais luz, ter mais hipóteses, mais horizontes. Enquanto pessoa, acho que ninguém quer ter esses limites, se lhe for dado a escolher. Enquanto pessoa que trabalha, enquanto artista, acho que todos gostamos de ter mais possibilidades. Em termos criativos, é bom seres desafiado por outros países, conheceres outras pessoas, outras formas de estar. Por mais que o nosso sítio seja muito bom, é sempre limitado – como todos são. E, no que toca a música, certamente, Portugal não é o El Dorado nem é o paraíso para viveres da música ou para trabalhares”, considera Pedro. “Muitas das coisas que crescemos a ouvir não são de cá e há coisas que vais fazer e linguagens que vais praticar que são de nichos – já eram de nichos e vão continuar a ser, logo, aqui, atingem poucas pessoas. Tens que ir à procura dessas pessoas, da tua tribo, pessoas que também foram contagiadas por essa linguagem. Quando falas do punk ou falas do hip hop, podem ser linguagens que, hoje em dia, estão na roupa ou na estética mas não é exactamente uma cultura que toda a gente domine. A cultura do hip hop é muito mais profunda do que parece, a cultura do punk, ou como ele se deu, é muito mais aberta do que parece, o próprio jazz… São tudo palavras fáceis de dizer e que toda a gente conhece mas a cultura que está por trás, a interpretação, a apreciação que podes ter das outras pessoas, aqui, é limitada, como é óbvio – como é em todo o lado. Tens que ir a muitos sítios para perceberes que, afinal, não estás sozinho – tem sido óptimo”. Um maior horizonte de acção traz, também, maiores riscos. Pedro sabe disso: “As críticas podem ser duras mas não tenho medo disso; podem ser intensas mas fazem-te crescer; são, certamente, mais imparciais, não há qualquer tipo de conhecimento pessoal. Não há o lado mais emotivo que, aqui, podemos ter, no lado mais latino das coisas. [Em termos internacionais] Não conheço ninguém de lado nenhum. [Tudo] Aconteceu da melhor maneira possível: alguém, como eu, que gosta de música, descobre um disco e decide falar dele. Não me deve nada e não tem nem contra nem a favor. É assim que quero que as coisas sejam vistas: “ouve o disco e diz-me o que achas””. E aquilo que os “outros” acham podem não compreender – pelo menos, não as palavras. É com orgulho que Pedro vê o seu contributo para a divulgação do português. “O facto de teres uma língua diferente, que é sempre um patinho mais feio das línguas que são faladas no mundo mas que é uma língua forte e que é a língua que consigo praticar melhor, onde consigo ser mais honesto e sincero, conseguir que exista nessas revistas e tenha um lugar, sinto que é uma pequena vitória – não minha mas que nos favorece a todos e às pessoas que, como eu, falam essa língua” Mas não só: as vitórias de Batida trazem também um “lugar para novas formas de Angola se manifestar, novas formas de Portugal e Lisboa se manifestarem. Dá-me conforto: é como lançares uma semente… O teu gesto de cultivar é lançar sementes, não tens que contar que cresça algo – tens, apenas, que continuar a semear mas é bom quando nasce alguma coisa. Não me vou queixar muito: em Portugal, desde o início, as coisas correram bem, com alguns críticos que disseram coisas incríveis, muito bonitas, mas é bom veres pessoas que não te conhecem a dizerem coisas tão fixes – e é interessante ver a interpretação de uma maneira completamente diferente. Pô-los a ouvir Clash de uma maneira diferente é interessante ou ter os Clash a dizer que gostam da música, e que se identificam com ela, é ainda mais interessante. Se calhar, mais do que a crítica por si só, o reconhecimento entre pares, e de pessoas que aprecias, é bom e é gratificante”.
Pedro Coquenão encara a internacionalização de Batida como estimulante, “como seres jogador de basket e jogares na NBA ou seres jogador de futebol e jogares na Premier League”. Foi à Premier League dos festivais que Batida regressou em 2016 – repetiu presença em Glastonbury. “Na primeira vez [em 2015], calhei num “slot” que achei que não era o melhor e, essencialmente, dei um feedback menos bom. Foi-me dada a possibilidade de fazer outra vez e, se for para fazer melhor, interessa. Sendo grande e sendo forte, não é o festival mais confortável – é mesmo rock’n’roll com lama. Seja lá o que isso for. Mau tempo, pessoas de botas… É um cenário que não é fácil de descrever à primeira”. Um melhor posicionamento no alinhamento, aquando do regresso, em 2016, fez com que actuasse num dos horários mais “complicados” – por exemplo, ao mesmo tempo que Adele. “Culpa minha! Na segunda vez, o horário era muito melhor mas sim, estava a tocar ao mesmo tempo que toda a gente”, confessa. Em 2015, porém, a competição não tinha sido menor: “Calhou-me o Lionel Richie e o Dalai Lama – não sei o que podia ser pior, Jesus Cristo a fazer alguma coisa ao mesmo tempo? É muito difícil concorrer com o Dalai Lama é muito difícil – não estou a ver como”. No entanto, Batida foi considerada, por várias publicações, como uma actuação a não perder. “Uma das coisas boas que aquele festival tem – e que Inglaterra tem, no que toca à música – é que há muita gente que vai para ver a Adele e os New Order e o James Blake e toda a gente que estava a tocar ao mesmo tempo mas também há gente que vai só à procura do acidente e do novo e daquilo que não conhece – isso é muito fixe. Houve pessoas que disseram que era óptimo [aquela sobreposição] porque ia haver menos gente e mais espaço para dançar”, recorda Pedro.
Ao longo dos anos e dos muitos palcos e dos muitos cenários que encontrou, porém, Pedro Coquenão foi descobrindo mais formas de estar, entre povos, culturas e tradições. As pessoas não dançam de maneira diferente – mas podem reagir de formas muito distintas. “Lembro-me da primeira vez que fui à Ilha Reunião: eu uso óculos – e não vejo bem as coisas no detalhe – mas passei o tempo todo a olhar para o público e o comportamento não parecia ser… Não estava a conseguir perceber, na linguagem, o que se estava a passar: se estavam a gostar muito, a gostar pouco, a detestar… Mas ninguém se ia embora e aquilo estava cheio, era um pavilhão grande”. Acabou o concerto sem compreender… até que, “quando saí, as pessoas que me abordaram, diziam que tinham adorado, que tinha sido uma coisa incrível. Nas redes sociais, recebi imensas mensagens de pessoas a quererem que lá voltasse”. O regresso dá-se em 2016, com dois concertos, perante a estupefacção de Pedro: “À Ilha Reunião – não é propriamente a coisa mais óbvia ou que está ali ao virar da esquina!” [A ilha encontra-se no Oceano Índico, a leste de Madagáscar]
Se é certo que os concertos de Batida surgem repletos de referências visuais, tornando-se muito mais um espectáculo do que uma mera actuação, Pedro tem também cravados na memória momentos em que o público, simplesmente, desfruta da música – como aconteceu na primeira passagem pelo Brasil. “A
imagem que fica é toda a gente a divertir-se. É das coisas de que mais gosto – apesar de pensar muito, quando vou para o palco, que as coisas funcionem de forma a poderes ter várias percepções (ou estar a ver a dança ou a assistir às imagens ou a ouvir o ritmo), apesar de haver tanto trabalho para dar a informação às pessoas, gosto muito quando há um certo abandono e as pessoas estão só a divertir-se com aquilo de que estão a desfrutar. Olham de vez em quando, dançam, falam… Não necessito e nem aprecio a situação em que estás num sítio e está toda a gente a olhar para ti e tudo o que fazes [está] a ser decisivo para as pessoas – não gosto de ter essa importância. Gosto de estar a fazer isso, com a mesma responsabilidade, mas que as pessoas estejam na vida delas. Gosto que haja um mínimo de disponibilidade mas também gosto quando há um abandono – e, no Brasil, lembro-me de ter um monte de gente à frente, a dançar que nem doidos. Gostei muito”. São precisos mais exemplos? Venham eles: “em Nairobi, o público também me marcou muito. Fisicamente, foi um show muito forte, quase ombro a ombro. O público britânico, em geral, é muito bom: eles têm um péssimo tempo, não têm comida de jeito, e o futebol e a música são muito importantes; quando entram num show, querem que corra bem. Isso é óptimo: teres o público a torcer por ti, a querer que aquilo seja uma grande noite, é óptimo”.
A obra de Batida pode parecer uma imensa festa mas há, subjacente, uma outra mensagem. Não tem que ser política ou social mas não esquece os dilemas políticos e sociais. Não tem que ser de Portugal ou de Angola mas não esquece as desigualdades e as injustiças. Da mesma forma que as crianças não temem exercer o seu poder de questionar, Pedro, enquanto Batida, não esquece, nunca, a inquietação que faz o seu mundo girar. “Não gosto de viver preocupado a toda a hora nem gosto de viver deprimido ou afectado negativamente por aquilo que me rodeia ou, às vezes, pelos próprios dramas da minha condição ridícula de ser humano. [Mas] Há um bocadinho disso tudo: tem que haver festa, a certa altura, senão, as coisas não fazem sentido. Têm que ser coisas sem sentido, para isto fazer sentido. O riso, por si só, sem haver muitas camadas atrás dele, salva-nos a vida. O rir, o dançar, a música, são as coisas que nos salvam. E isso tem que estar lá sempre mas não há como estar sempre nesse estado e seres insensível a tudo o que se passa à tua volta. Se isso é ser político ou não… Há quem diga que sim, que isso é político e que todos somos políticos por condição. Não ser é uma decisão, é um autismo, é um escapismo. Não consigo estar só agradado com o que temos à volta – também sinto necessidade de melhorar e de interferir no que está à minha volta. Esse drama, essa inquietação eu sinto-a como humana”.
O caminho para a felicidade de Pedro é feito de tudo isto: parece diferente porque é. O aviso foi deixado no início: é difícil acompanhar Pedro Coquenão porque ele parece estar sempre um passo à frente. Isso é bom: é disso que são feitos os grandes inventores. Ele inventou muito mais do que a lata que usa nos seus concertos – inventou uma forma universal de comunicar. Onde o ontem e o amanhã, o aqui e o acolá convivem como irmãos. Inquietos mas sempre desafiantes. Assim é viver com vários amores. Ao mesmo tempo.