1. Home
  2. Entrevista
  3. Branko: “Viciado no futuro”

Branko: “Viciado no futuro”

Branko: “Viciado no futuro”
0
0

A sua revolução começou há dez anos – quando a Enchufada arrancou e os Buraka Som Sistema invadiram o Clube Mercado. Eis Branko, em discurso directo.

 

O rol de conquistas de João Barbosa em (apenas) uma década é, no mínimo, impressionante. Chamar-lhe agitador cultural é pouco: foi Lil’ John mas também J-Wow, partiu de Lisboa mas tomou o mundo de assalto. Hoje, assina como Branko mas apenas o nome mudou – a curiosidade, a vontade de ir mais longe e de encontrar novos desafios mantém-se. Os Buraka Som Sistema entraram em pausa por tempo indeterminado mas o pé de Branko continua no acelerador.

 

É, provavelmente, uma das mais interessantes personagens da actual música nacional. DJ, produtor, editor, o que torna Branko tão carismático é a forma como não descansa à sombra dos marcos do passado – é isso, também, que faz com que a sua música se mantenha, sempre, inventiva, insatisfeita, curiosa. Ele também é assim: inventivo, insatisfeito e curioso. Olhando para o seu trajecto, o ímpeto é o de compartimentar as suas curvas e arrumá-lo em ciclos de 10 anos. João concorda: “Tem que ser em alguns ciclos e o 10 é mais redondinho… Pensando nisso, faz algum sentido: comecei a interessar-me mais pela música, e pela produção de música electrónica, com o computador que havia lá em casa, também 10 anos antes disso, entre 1996/97.  São passos, pequenas montanhas, pequenos ciclos, que se fazem”. Olhe-se, então, para esses pequenos ciclos que encaminharam o João até Branko.

 

O João queria ter uma banda mas restou-lhe o computador do pai, algum software pirateado e muita curiosidade.

“Foi o Fruityloops, o Acid Pro e o Sonic Foundry Acid, que era um programa só de edição. Não convenci [o pai a instalar os programas no seu computador] porque ele não estava lá à tarde, basicamente. Dava para instalar aquilo, fazia uma pasta que não estava muito à vista no desktop e deu para inventar um bocadinho.  A curiosidade veio de alguma frustração em tentar ter uma banda, juntar as pessoas, sentir o mesmo tipo de entusiasmo de toda a gente com um projecto, de forma a conseguir andar para a frente. Também havia alguma ingenuidade: pensava que tinha que ser [com] todos de mãos dadas, a fazer o processo todo, em si. Lembro-me que, na altura, havia uma revista, a Pro Música, que dava umas dicas de como produzir música electrónica. Juntando isso tudo, acabei por perder-me facilmente em frente a um ecrã, onde já passava muito tempo, com consolas. Basicamente, foi deixar de perder tempo a olhar para um ecrã e começar a criar alguma coisa – enquanto se olha para um ecrã”.

 

O João foi à Índia mas, quando regressou à Venteira, na Amadora, trazia um mundo inteiro no seu MiniDisc – e Rui Pité estava lá para o acompanhar.

“Na altura, havia o MiniDisc – estava na moda mas agora parece a coisa mais velhinha do planeta Terra! Fui [à Índia] quando tinha 20 anos, com uns amigos, durante dois meses, dois meses e pouco. Foi a minha primeira viagem de me aperceber que o mundo não funciona da mesma maneira que funciona no eixo linha de Sintra-Lisboa e isso mudou bastante a minha perspectiva sobre tudo: perceber que é tudo relativo, que a maior parte dos conceitos com que crescemos, que achamos que são absolutos, não são. Nesse processo, estava com o MiniDisc e com um microfone e gravei uma série de coisas. Nessa altura, já tinha dois ou três anos de andar a inventar música com o computador e, quando voltei para casa, achei que tinha ali uma matéria-prima que só eu é que tinha, porque a viagem tinha sido minha e eu é que tinha visto aquilo – obviamente, outra pessoa podia tê-las encontrado mas não daquela forma. Acabei por samplar uma série de coisas e fazer loops, brincar um bocado, desde gravações com instrumentos de percussão a crianças a brincar. Eu e o Rui acabámos por fazer uns cinco ou seis temas, com base nesses samples. Chamámos a esse projecto Fusionlab – foi uma coisa muito ingénua, de início de vida musical”.

 

O João podia ter sido advogado mas Madrid havia de lhe mudar a vida.

“Devo ter sido a pessoa que demorou mais tempo a acabar esse curso [de Direito] da Católica porque estava sempre a adiar. Congelei a matrícula durante uma série de anos e, quando descongelei, ia fazendo uma cadeira por ano. Estava tudo mais ou menos a acontecer ao mesmo tempo: fui estudar engenharia de som, para Madrid, pouco depois de ter vindo da Índia, durante um ano. Depois, a partir daí, ia indo à faculdade, ter umas aulinhas. (… ) Durante uma viagem de carro, para Barcelona, estava eu e o Kalaf – ele tinha ido ter comigo a Madrid…  Não sei porque é que fomos de carro a Barcelona! –, começou a surgir a ideia de criarmos a nossa própria estrutura. Estávamos cheios de ideias: tínhamos acabado de produzir uma série de demos, umas sete ou oito, para o Kalaf, para um disco que ele tinha assinado com uma produtora que era a Nylon, e tinha sido tudo rejeitado. Foi um pouco no backlash dessa negação que acabámos por pensar que, cada vez mais, era essencial termos o nosso próprio núcleo, a nossa estrutura. Foi uma coisa que demorou um pouco: era uma coisa para a qual não estávamos preparados. Até fazermos o nosso primeiro lançamento, em 2006, em que já éramos uma empresa – em que já estava toda a estrutura a começar a funcionar –, ainda demorámos uns quatro ou cinco anos até conseguirmos inventar uma espécie de business plan, num quadro de cortiça. A ideia foi essa: não nos estavam a abrir as portas necessárias e achámos que, em vez de andarmos a perder tempo à procura, fazíamos a nossa própria estrutura – e isso, depois, obviamente, acabou por se materializar tudo com Buraka”. 

 

O João não era um novato quando os Buraka Som Sistema nasceram: já tinha passado pelo Clube da Esquina e pelo Lux, pela Cooltrain Crew e pelos 1-Uik Project.

“Eu e o Rui sempre nos acompanhámos: morávamos perto um do outro, andávamos na escola juntos e tivemos muito tempo para errar. Estivemos muitos anos a fazer música entre o meu sótão e a marquise dele (que era onde ele tinha o computador), que ninguém ouvia, não havia qualquer foco; fizemos muita música que não foi para lado nenhum – porque não tinha que ir. Era só erro e consequência e perceber, através de x erros, que dava para ter uma sonoridade melhor, pior, desta forma, com mais ou menos personalidade. Quando foi preciso meter a primeira e arrancar com uma coisa mais focada e mais séria (que vai corresponder com acabarmos a escola), esse espaço permitiu-nos estarmos mais preparados, estávamos com algum vapor, a coisa já estava a acontecer. A partir daí, foi só começar a construir e a ter ideias para projectos. Obviamente, Lisboa também não é grande e, facilmente, deu para entrar em contacto e falar com Kalaf, com o Johnny, com o Sam The Kid, com o Conductor, [com] uma série de personagens que andavam por aí. Acabou tudo por se encaixar de forma a andar para a frente com uma série de projectos”.

 

2006 muda a vida de João. Na verdade, muda a vida de muita gente.

“Acho que há uma coisa muito bonita naquele momento de ingenuidade do início das noites de Buraka, no Clube Mercado. Basicamente, foi uma coisa arranjada de forma relativamente rápida, em dois ou três dias, entre ir à Praça de Espanha comprar CDs e fazer edits e remixes e ter a nossa primeira noite… Essa fase de ingenuidade da música é muito bonita mas, ao mesmo tempo, acontecem coisas que não conseguimos capitalizar ou absorver. No fundo, nas primeiras noites, estávamos ali a quase formar a banda: a Petty vem cantar connosco porque o Andro [Conductor] a trouxe para vir e ela acaba a noite a cantar; o Zé Carlos – que foi nosso dançarino durante os primeiros dois anos – veio por ele próprio, numa noite. A banda fez-se em quatro ou cinco residências e isso tem alguma piada. (… ) Lembro-me que, com o primeiro EP, ninguém entendia bem o que aquilo era: na altura, eu estava a produzir uma série de coisas e estava em contacto com A&Rs da EMI, da Universal, e a coisa não era bem entendida. Lembro-me de tocar o “Yah” e a coisa não fazer sentido para ninguém. Tudo isso só reforçou mais a nossa ideia. Mesmo em termos de agência: ainda estivemos em algumas agências normais mas também não nos entendiam, não entendiam a diferença entre um DJ set e um concerto, não entendiam uma série de coisas que, para nós, eram super óbvias. Apetecia-nos gritar. Então, desistimos: juntámos aqui as pessoas todas e fizemos nós”.

From Buraka To The World mostra João vezes dois: uma das caras da editora Enchufada e um dos nomes por detrás do inovador projecto de electrónica.

“Na nossa cabeça, já fazia todo o sentido mas, sem dúvida, que [o projecto] era complicado compreender. Do ponto de vista da realidade social em que estávamos a viver e onde crescemos, fazia todo o sentido – só que ainda ninguém tinha ligado o botão. Em termos de Portugal, havia essa consciência, as pessoas estavam lá e a geração estava lá, preparada para a ouvir – por isso é que o primeiro EP passou tão rapidamente de nós para as pessoas. Fizemos 500 cópias do From Buraka To The World e pusemos à venda na Fnac – numa semana, já não havia nada. Estava a haver um acompanhamento do que estávamos a fazer e uma relação directa. Em termos internacionais, de conseguirmos espalhar a coisa pelo mundo, sinto que conseguimos dar uma volta que não é normal, conseguimos fazer uma coisa que não é suposto… Um grupo que é uma mistura de portugueses e angolanos, que faz música de dança electrónica: foi pela surpresa e por ser diferente. Sofremos – no bom sentido – de apanhar todo um comboio de inovação musical, de pessoas que andavam à procura de algo novo. Mas não era simples de entender: não havia referências, o caminho foi feito por nós, ainda com uma catana na mão – enquanto tentávamos perceber como é que se fazia isto, como é que se viajava, como é que se levava o backline lá para fora… As nossas primeiras viagens foram erros completos e absolutos, com excesso de peso, por exemplo, que matavam qualquer tipo de hipótese de fazermos dinheiro com uma digressão”.

 

Quando, em 2012, escritório da Enchufada foi destruído por um incêndio as memórias de João mantiveram-se intactas.

“Perderam-se bastantes coisas, muita memorabilia, prémios, merchandising, aquelas coisas que deixas, numa caixa, quando fazes um disco – a primeira edição de From Buraka To The World, os primeiros 7”, até coisas de 1-Uik Project. Mas, no fundo, está tudo nas nossas cabeças, está tudo nos nossos discos rígidos, dá para reconstruir tudo. Talvez tenha dado mais trabalho do ponto de vista de empresa – os papéis de impostos, de contratos, de artistas – do que do ponto de vista criativo, nosso, de Buraka, de Enchufada, onde estamos mais preocupados em levar a coisa para a frente. No fundo, é [essa] a forma como acabo por levar todas as derrotas que vão acontecendo. Às vezes, pode ser desmotivante: aquele gig que estavas a pensar que ia ser a coisa mais fantástica do mundo, onde todos os cinco minutos que aconteceram tiveram uma hora de pensamento e de decisão sobre qual era a melhor música… e depois tens três pessoas à frente. Acontece mas, no dia a seguir, acordas, bebes uma água com gás e continuas. Sempre fui mais viciado no futuro do que nostálgico do passado”.

 

Em 2013, João fez história na música portuguesa: tornou-se o primeiro DJ nacional a garantir uma residência na BBC Radio 1.

“Fiquei super feliz. A coisa partiu de mim e fui eu que mandei o email: chateei quatro ou cinco pessoas até conseguir o email da pessoa certa. Às vezes, tenho essas manhãs – manhãs de tiro ao alvo, manhãs de coisas que quero fazer e ‘bora lá tentar arranjar uns emails. Nada diz que vai entrar nas caixas de email de alguém e que vá ser ignorado, lido ou não lido – vamos lá tentar. Foi uma tentativa de tiro ao alvo que acabou por funcionar bem. Eles ainda me pediram uma demo do que seria a dinâmica do programa. [Essa residência] Fez-me ocupar um espaço que nunca tinha tido, onde me encaixei numa estrutura que está mesmo no centro do mundo, em termos de informação, de música, de tudo. Fez-me fazer uma série de ligações, fez-me quase reequacionar tudo o que estava a fazer”.

Depois de muitos singles, remisturas e produções, João apresenta-se a solo – Atlas, o álbum de estreia de Branko,  chega em 2015.

“É preciso colocares-te numa situação de desconforto para conseguires ganhar o conforto – daí a minha ideia de o início do disco não ser sequer no meu estúdio, não ser em Lisboa, ser completamente fora. O início do disco foi em Amesterdão, depois de Amesterdão fomos para São Paulo, de São Paulo para Capetown, depois Nova Iorque e depois é que acabámos em Lisboa. A minha ideia era mesmo sair de ciclos, sair de bolhas, sair de hábitos, sair de tomar o pequeno almoço naquele café e às 10 e tal querer estar no estúdio a fazer alguma coisa. A minha ideia era desmontar isso tudo: juntar cerca de 30 convidados que passaram por cinco semanas inteiras de estúdio e criar música relativamente rápido –com alguma pressão mas uma boa pressão. A ideia não era fazer a música da nossa vida mas era vomitar (no bom sentido) o máximo de boas ideias e de coisas espontâneas. A coisa não dependeu só de mim, não podia depender só de mim”.

 

O João é produtor e é DJ mas não é uma figura solitária – pelo contrário. Das edições Upper Cuts e da curadoria das Hard Ass Sessions, da Enchufada, passando pela criação do Globaile, o festival dos Buraka Som Sistema, rodeia e quer rodear-se dos mais diversos focos de criatividade.

“Acima de tudo, é importante estar rodeado de pessoas, de criadores, de músicos, de designers que, no momento certo, sejam as pessoas certas para fazerem o contraponto de ideias que tenhas. É um dar e um receber que, para mim, é essencial enquanto se faz música. [As Hard Ass Sessions] São um tubo de ensaio. É o mais próximo de um laboratório de investigação científica aplicada à música electrónica. A razão de existirem sempre foi essa: tirar essa proximidade com a cidade de Lisboa e, ao mesmo tempo, experimentar coisas, experimentar artistas. Não estar preocupado em ter um evento que precisa de ter um nome e que venda bilhetes; é estar preocupado em garantir que aquilo tem seis horas de música, da meia-noite às seis da manhã, e que essas seis horas de música são boas, são interessantes e são relativamente únicas – só podem ser experienciadas ali”.

 

Em 2016, o João já correu o mundo inteiro – mas o mundo inteiro nunca vai deixar de correr no João.

“Acho que já é tarde demais, já não consigo olhar para música de outra forma.

Por exemplo, o tecno é óptimo mas é uma visão musical tão dentro de uma baliza, de um só lago, de uma coisa definida, dá para ver o início e o fim – é aquilo, já está definido e eu não me consigo emocionar com isso. Vou sempre ter que me emocionar com tentar arranjar duas coisas que nunca tenham sido encaixadas e tentar perceber como é que aquilo pode encaixar e tentar dar essa volta – mesmo que a coisa nem sequer passe por ser uma coisa em meu nome, pode ser a junção de dois artistas. (… ) A ideia aqui, com este ano de 2016, com esta viragem – entre o final da banda com a introdução de um novo festival, com uma série de sementes que estão a ser plantadas – é agarrar em toda aquela que é a ideia por detrás dos Buraka, toda a visão de reinterpretar a fórmula como crescemos, e aplicá-la a uma fórmula musical. É agarrar nisso e espalhá-lo no máximo de sítios possíveis. O Rui fez agora uma participação com Deolinda (que eu não acharia óbvia sem me dissessem que ia acontecer quando surgiram os Deolinda); eu produzi uma música com a Ana Moura e o Bonga, para o disco de tributo da Amália – são coisas que não fazem sentido mas são coisas onde vamos pôr o nosso veneno. Isso vai abrir portas para a coisa passar para outro lado – um lado com menos base em nós e naquilo que é a música estamos a fazer mas um lado que passa mesmo por espalhar a ideia, que passa por programas de televisão, de programas de rádio, de diversidade de entretenimento”.

Os Buraka Som Sistema podem ter entrado em pausa mas nada chegou ao fim.

É Branko quem o diz: “chamamos aos primeiros dez anos o fim do primeiro ciclo porque tudo continua mas de outra forma, de forma mais enraizada até do que ter uma banda. A banda permitiu-nos chegar até aqui, sentar com quem quer que seja, com algum impacto. É isso que fica para mim: ficam cinco pessoas com vontade de levar para a frente a mesma ideia por detrás de Buraka Som Sistema mas nas mais diversas áreas do entretenimento”. No olhar de João, amanhã nunca é longe demais. É já ali, ao virar daquela esquina – seja ela em que cidade for. É esse o seu Atlas.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

LEAVE YOUR COMMENT