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Madonna no Coliseu dos Recreios: Rainha santa

Madonna no Coliseu dos Recreios: Rainha santa
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Poderá um concerto pop tornar-se uma imensa celebração no limiar da religião? Onde se prega à luta, à resistência mas também à dança? Em Lisboa, Madonna foi uma verdadeira rainha santa.

Nem todos os santos tiveram uma vida, digamos, santa. Aliás, muitos há, espalhados pela Bíblia, que fizeram, exactamente, o contrário – calcorrearam a terra repletos das falhas que os tornavam humanos até que, sem que ninguém o pudesse prever, os seus actos os tornaram (lá está) santos. Podia dizer-se isso de Madonna. Ainda que o seu nome de baptismo, de certa forma, já abrisse caminho para esta realidade mais religiosa.

Na verdade, desde que há memória, em Madonna, o sagrado e o profano sempre compactuaram, como dois lados da mesma moeda, como a figura que tanto se crucificava em palco quanto simulava orgasmos. Sexo e religião sempre foram premissas desta cartilha – mas, em 2020, e em Madame X, tudo isto é levado a um outro patamar.

O sexo já não é exacerbado – mesmo que haja piadas face à maior janela da alma (segundo Madonna, poderão não ser os olhos) ou aos tamanhos de falos alheios – mas está lá, subliminar, como algo que comanda a vida. E esta vida é – como sempre, como dantes – feita de luta. Uma luta por direitos alheios, por liberdade, de expressão, de acção. Como diz James Baldwin, bastas vezes citado no espectáculo que Madonna apresentou em Lisboa, os artistas estão aqui para perturbar a paz. E, como Madonna, não há outro artista.

Madame X, o álbum, é um disco com pouca consistência, demasiado longo, repleto de boas ideias mas que se dispersam no seu tamanho (sim, aqui o tamanho também importa). Porém, Madame X, o concerto, revela uma solidez surpreendente. Não se lhe chame, no entanto, concerto – nunca Madonna foi tão teatral em palco como em Madame X. E o mais curioso é que consegue fazê-lo “reduzindo” o volume de toda a encenação que fez a história das suas digressões anteriores (e o tamanho dos seus espaços – sim, lá se volta à ideia de tamanho). É teatral porque se reparte em vários actos, com temáticas exactas, com cenários específicos, com temáticas claras. Ou seja, é muito mais um musical do que um mero concerto.

Em termos cénicos, Madame X é irrepreensível: da recriação de uma Nova Iorque de outros tempos à invenção da casa de fados de Madonna, sem esquecer a sublime simplicidade de “Frozen”, onde uma Madonna isolada, canta no centro de uma imensa Lourdes dançante (aliás, de todos os seus filhos, apenas Rocco nunca é “citado” neste Madame X). Apesar das backing tracks (que se tornaram evidentes em “Medellin”), nunca Madonna esteve em tamanho controlo da sua voz. Porém, fisicamente, nunca esteve, também, tão fragilizada. Foram várias as vezes que referiu o seu sofrimento físico e as suas lesões (que a obrigam a subir ao palco com umas “horríveis botas” ao invés dos sensuais stilettos), outros tantos os momentos em que a sua interacção com o público se estendia para que pudesse recuperar ou ainda todas as outras em que, de forma subtil, todos os seus movimentos em escadarias eram acompanhados por uma mão amiga…

Mas Madonna é a rainha santa – aquela que olhou nos olhos do seu público, que nele mergulhou, que com ele brincou, que com ele se sentou. Dizia que tinha regressado a casa e a sensação era mesmo essa: a de que todos estavam na sua casa. A partilhar com ela “salty beer”. Quente e longe da sua predilecção por vinho do porto branco. Madame X é Madonna e Madonna é Madame X: a pecadora e a mãe, a lutadora e a amante, a bailarina e a pregadora. Num concerto totalmente dedicado ao seu mais recente álbum – onde Madonna sabe “sair” de cena e dar o protagonismo que ninguém ousava questionar às Batucadeiras da Cabo Verde –, inspirado no melting pot cultural que Lisboa lhe apresentou, Portugal viveu, não só do ímpeto criativo mas também dos seus músicos (com destaque para o jovem Gaspar Varela e a sua guitarra portuguesa, mas também para Jéssica Pina, Carlos Mil-Homens e Miroca Paris). Pela primeira vez nesta digressão, ela não tem que explicar o que é o fado e até se arrisca a homenagear a bisavó de Gaspar, Celeste Rodrigues, numa interpretação de “Fado Pechincha”.

Mas, se tudo isto, prova que Madonna é rainha, onde é que ela se torna santa? Se dúvidas houvesse da sua santidade, reviva-se “Like A Prayer” e veja-se como um Coliseu pode albergar 2700 crentes. Ou erga-se o punho e tenha-se fé no futuro, na despedida, com “I Rise”. Depois de Madame X, Madonna nunca mais vai ser a mesma – mas isso não é novidade. Madonna nunca foi igual. O seu verdadeiro milagre é que, na sua diferença, ela torna tudo o resto, também, diferente. Único. Real. Santo.

Foto: Instagram oficial de Madonna

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Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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