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Mirror People: “Para mim, é importante experimentar”

Mirror People: “Para mim, é importante experimentar”
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O que fazer quando as canções escritas não encaixam na banda onde se alinha? Cria-se um alter ego irónico, onde se responde por muitos mas se é apenas um. Rui Maia é Mirror People e Mirror People é Rui Maia. Porém, ao segundo álbum, Mirror People algo mais.

 

Rui sempre fez música sozinho – mesmo quando se tornou um dos lados do triângulo que responde por X-Wife. Começou por tocar guitarra mas apaixonou-se pela versatilidade dos sintetizadores. Ao aperceber-se que algumas das suas canções não tinham espaço de movimento nos ritmos do rock electrónico professado pelos X-Wife, decidiu canalizar a sua veia mais virada para as pistas de dança num outro projecto. Sabia que era um emblema de trabalho seu mas não lhe deu o seu nome: ao criar os Mirror People, assumiu o protagonismo mas procurou companheiros de luta. Depois de vários EPs, estreou-se nos álbuns – à viagem colorida de Voyager, sucedeu Bring The Light, onde percorre as ruas de uma cidade dura e crua, que vive em 1984 mas sabe que 2017 está ao virar da esquina.

 

Da Rússia, com amor.

 

Podia dizer-se que Mirror People é um projecto de ironias: é sonho de um homem mas responde como se de muita gente se tratasse; nasceu na mente de Rui Maia mas nunca foi pensado em formato limitado – exactamente ao contrário. Quando Rui compreendeu que as canções que estava a escrever não condiziam com as paisagens dos X-Wife, achou que não as devia ignorar. Porém, a vontade de ter um grupo seu não era ímpeto solitário – por isso, decidiu dar-lhe nome de banda. “A intenção, quando avancei com o nome, era a de criar uma espécie de banda em que eu sou o líder. Isso, logo de início, não foi possível”, explica o mentor dos Mirror People. “Entretanto, passaram alguns EPs e um álbum, até chegar a este momento, em que já me sinto mais realizado, em que tenho um projecto em que a base parte de mim, no meu estúdio aqui em Lisboa, em colaboração com outras pessoas”. No momento da edição do segundo álbum do grupo, “o projecto está mais sólido: tem o João Pascoal, a tocar sintetizadores e baixos e vozes, e o Jonny Abbey, que gravou o álbum [Bring The Light] comigo, que escreveu as letras e canta em quase todas as canções”. No entanto, para se chegar a Bring The Light, é preciso contar o caminho traçado até aqui.

Rui Maia pode ter-se tornado conhecido do grande público aos comandos dos pratos, nas cabine de DJ, ou por detrás dos sintetizadores: porém, o seu primeiro amor foi a guitarra e o primeiro amor é algo que nunca se esquece. “A guitarra é um instrumento muito importante para mim. Comecei com a guitarra e com bateria porque, em casa, tínhamos uma sala de ensaios. Os meus irmãos mais velhos tocavam, na altura – ambos eram baixistas, curiosamente. Tinha sempre lá uma guitarra pousada, de um amigo, e uma bateria, de um vizinho, mas a guitarra tornou-se importantíssima. Aprendi a tocar sozinho, por um livro: aprendi a fazer os acordes, as bolinhas onde tinha que pôr os dedos… Mesmo hoje em dia, a guitarra é muito importante porque é o instrumento que eu, se calhar, domino melhor – muitas das melodias que me surgem na cabeça consigo tocá-las na guitarra e só depois é que chega a parte dos sintetizadores e dos teclados. Muitas vezes, o ponto de partida de uma canção é na guitarra e passo, depois, para a parte dos sintetizadores. Continua a ser um instrumento do qual gosto mesmo muito, gosto bastante de tocar guitarra: apesar de não me considerar grande guitarrista, gosto de experimentar e de tirar sons não convencionais da guitarra. É importante para mim”. É uma visita à Feira da Vandoma que acaba por lhe mudar a vida, quando decide comprar um sintetizador, por apenas seis contos. “Foi o [meu] primeiro [sintetizador], sim. Ainda, hoje em dia, o uso: é um Korg MS10, é um sintetizador importante. Cresci no meio dos instrumentos mas os instrumentos de teclas eram raros lá em casa – eu costumava ir comprar discos à Feira da Vandoma, que é como a Feira da Ladra, em Lisboa, e houve uma altura em que encontrei um objecto interessante, cheio de botões, que associei, logo, imediatamente aos Air e aos Blur – dos vídeos que via, na MTV, sabia que o Damon Albarn usava um parecido. Curiosamente, lembro-me que, quando vi o sintetizador, peguei nele e ele era mesmo leve; perguntei ao vendedor se tinha alguma coisa lá dentro – só parecia a chapa, com os botões cá fora. Foi numa altura em que o digital continuava a ser mesmo importante e as pessoas continuavam a valorizar muito o digital: todas aquelas work station, que faziam tudo, tinham os ritmos, faziam sons de piano e strings ao mesmo tempo e modelavam vozes – tudo isso é que era importante e os analógicos estavam completamente desvalorizados. Comprei [o sintetizador] mesmo muito barato por causa disso”. Uns tempos mais tarde, havia de adquirir um outro que também duvidou que funcionasse, tal o odor a perfume que exalava – antes disso, porém, ainda em casa, tinha feito as primeiras experiências com um sintetizador do qual apenas era possível extrair sons espaciais. “O que acontece é que esse sintetizador era russo e estava todo escrito em russo: tinha imensos botões e eu carregava à sorte, aleatório, “deixa lá ver esta configuração… se eu tentar fazer aqui um “r” o que é que dá?” Tinha uns botões mesmo, mesmo super rijos. Era uma experiência tocar naquilo! Acima de tudo, acho que estava estragado porque, realmente, só dava sons meio aleatórios, que nos faziam dizer que parecia uma nave espacial, um filme de ficção científica”.

 

Entretanto, nos Estados Unidos.

 

Em 2003, partindo de três instrumentos que estavam na casa de Rui, com João Vieira e Fernando Sousa, Rui Maia toma o país de assalto com os X-Wife. Editam um EP e vários álbuns mas a veia criativa de Rui não se encerra nas composições partilhadas pelo trio – e, assim, mais como consequência do que como plano, a concepção de um registo a solo começa a ganhar forma. “Sempre fiz música em casa, mesmo antes dos X-Wife. Em casa, já gravava, de forma muito primitiva, com o gravador de cassetes do Spektrum ligado a um deck de cassetes da aparelhagem – fazia quase um gravador de pistas mas sempre com a mesma cassete a ser regravada. Os X-Wife, no início, tinham uma sonoridade muito própria, com a electrónica ligada ao rock e ao punk. Como eu estava mais dedicado aos sintetizadores, comecei a ouvir mais música electrónica e a explorar mais esse lado: surgiram diversas canções que não encaixavam no mundo dos X-Wife. Pensei, seriamente, em editá-las em nome próprio – e foi isso que aconteceu, logo de início. Mais tarde, Mirror People, é o desenvolvimento dessa faceta”, recorda. “Mirror People” é, aliás, o título de um EP: publicado em 2009, o sucessor de Cantonese Man roubava o nome a uma inspiração nos Love & Rockets mas é uma viagem pelos Estados Unidos, com os X-Wife, nesse ano, que acaba por marcar, em definitivo, a concepção dos Mirror People. “O que acontece é que, nessa digressão, passei imenso tempo na estrada, com viagens longas, de horas (porque a América é gigante!), [e isso] deu-me muito tempo para pensar e para estruturar e para idealizar isto tudo. Decidi avançar com o nome Mirror People para ter a possibilidade de não usar o meu nome pessoal e ter uma banda para poder mostrar a minha própria música”. No bilhete de identidade dos Mirror People surge, então, 2010 como a sua data de nascimento, o mesmo ano em que o EP Night Impact vê a luz do dia. Havia de colaborar com a Discotexas, de Moullinex e Xinobi, e com a Permanent Vacation mas, em 2015, finalmente, e depois de dois anos de preparação, chegava a hora do grande passo de gigante: a edição do seu primeiro álbum.

 

Do Alentejo para o mundo.

 

“O Voyager foi muito pensado durante o Verão e durante umas férias na costa alentejana e no Algarve”, arranca Rui, quando recorda o debute nos longa-duração. “Por essa altura, a sonoridade que andava a ouvir estava mais ligada ao disco sound e ao funk, canções mais upbeat e mais alegres, e isso acabou por influenciar o disco”. Ao longo do álbum, Rui surge rodeado de muitos convidados, de Maria do Rosário a Rowetta (dos Happy Mondays), dos Thunder & Co a Iwona Skwarek. “O Voyager, para mim, foi importante para me mostrar como escritor de canções: até à altura, as canções de Mirror People eram muito baseadas em bases instrumentais, muito viradas para o clube e para a pista de dança. O Voyager foi o primeiro trabalho de Mirror People em que o lado pop e o lado de canção apareceu – “I Need Your Love” ou “Come Over” têm uma estrutura de canção simples, de verso/refrão/bridge. O Voyager serviu para mostrar esse meu lado: até então, as pessoas não conheciam essa minha faceta de escritor de canções e o Voyager serviu para isso”. Se a primeira grande aventura era um compêndio de disco sound, colorido e descontraído, em dois anos – e com a edição de mais um EP, Telephone Call, pelo meio –, no capítulo #2, muito mudou no imaginário de Rui Maia. E, por consequência, na alma e no espírito dos Mirror People.

Voyager podia ser um mergulho de cabeça nos anos 1970 mas Bring The Light, o seu sucessor, de 2017, entra na máquina do tempo. “A ideia do Bring the Light foi situar o disco em 1984 e olhar para o futuro quando se está numa grande cidade a fazer música”, explica. Bring The Light, no entanto, não tem os 1980s apenas no imaginário. “Fiz questão de usar instrumentos dessa década, mais do principio dos anos 80, para recriar a sonoridade da altura. Isto não foi feito no sentido de cliché ou nostálgico: foi feito mais como uma visão, como se eu estivesse em 1984, presente naquele ano, a olhar para o futuro, e a usar aqueles instrumentos. A ideia deste disco é situar-me no tempo, naquela altura – usando determinado equipamento e tendo determinada ideia do que é o futuro, tentando viver naquela era, pensando como seria”. Os pilares da música dessa época são, igualmente, reverenciados em Bring The Light, um disco que “traz os 80s do mundo mais alternativo e mais underground (que são influências para mim e que são referências importantes que cresci a ouvir), como os Human League ou os Soft Cell”; também há, por aqui, as referências “a filmes, como O Pesadelo em Elm Street, ou aquelas bandas sonoras com os sintetizadores sequenciados e as vozes robóticas (para mim, as vozes robóticas vêm dessa altura, não vêm propriamente dos Daft Punk, como será a primeira referência a ser lembrada, são mais situadas nessa altura). O Bring The Light é um bocado isso: esse caldeirão de influências desde essa parte electrónica à parte noise, Jesus & Mary Chain, My Bloody Valentine, os Sonic Youth…”. Outro aspecto incontornável em Bring The Light passa pela ideia de cidade – e, se é verdade que o álbum nasceu algures entre Lisboa e Porto, o que é um facto é que esta urbe não é nenhuma delas. “Naturalmente, é um bocado influenciada por Lisboa e pelo Porto mas não é uma cidade em particular – pode ser qualquer grande cidade. Deixo à consideração do ouvinte: o objectivo de fazer música é que o ouvinte se sinta na pele de personagem principal da canção”.

Mirror People é, também, um espaço de liberdade criativa – Rui pode escrever as músicas mas não interfere com as palavras que acompanham as suas melodias. Foi assim em Voyager e foi assim em Bring The Light – mas, de lá para cá, houve uma alteração profunda: se, no primeiro álbum, convidou vários vocalistas, em Bring The Light, o parceiro é só um, Jonny Abbey (o autor do Porto que, em 2017, se prepara para publicar o primeiro álbum, Unwinding). Como Rui distingue, “o Voyager é um álbum muito ligado ao disco sound e ao mundo gay e a toda essa sonoridade e estética – e os colaboradores do álbum acabaram, também, por desenvolver essa sonoridade. Existe um encontro de ideias que não tem que ser falado, por causa da sonoridade que estava a praticar: é uma música electrónica mais leve, com um conceito mais de festa. Neste disco, as coisas são diferentes: tive a ideia da sonoridade para este disco, falei com o Jonny e transmiti-lhe o que me ia em mente e ambos desenvolvemos um caminho em concreto, que fosse mais sólido e que fosse de encontro ao resultado final”. Segundo Jonny, “as letras foram a minha interpretação dos instrumentais do Rui. Têm sempre um motivo bastante urbano e a base são sempre vivências que tive (ou que pessoas muito próximas de mim tiveram). Toda aquela estética urbana: há uma vibe urbana, de uma cidade que quase que não dorme. Tentamos passar isso nas letras e o Rui passa isso, perfeitamente, nos instrumentais”.

Se Voyager era movimentos de festa, Bring The Light “é um pouco mais duro, a nível de emoções e de estética”, concorda Jonny. “É mais cru e mais escuro. Não é só arco-íris e algodão doce – trata de assuntos como drogas ou corações partidos de uma forma mais obscura. Não é um disco de mega felicidade mas também tem músicas up, como o “It’s Not Over”, que é uma música cheia de esperança; o “In Your Eyes” acaba por ser a canção mais romântica do disco – conseguimos abranger um espectro largo. Mas, num plano geral, acaba por ser um disco mais escuro que o Voyager””, assume o vocalista. Curiosamente, encontra a ideia de luz no seu título. “Para mim, essa é a luz que vemos ao fundo do túnel, no meio da escuridão, quando parece que todas as portas se estão a fechar. Há sempre um pedacinho de luz que nos dá força para continuar a lutar e a alcançar aquilo que cada um pretende na vida. Acho que todos andamos à procura de felicidade: mesmo que estejamos no lodo, a felicidade é o que nos move para a frente. E, para mim, é isso que significa o Bring The Light”, assume o autor da canção que baptiza o álbum. A escolha final, no entanto, e como não podia deixar de ser, pertenceu a Rui, que prefere não tecer considerações em relação ao seu significado, deixando “à consideração do ouvinte. Para mim, pode ser uma coisa e para ti ser outra. Não existe algo sólido que queira demonstrar: no fundo, sei o que é esta luz para mim mas posso não querer revelar”.

Em 2017, de certa forma, os Mirror People são mais People e menos Rui – mas boa parte destas canções, pensadas para a pista da dança, nascem… de pijama. “Sim, muitas delas. Isto porque eu tenho o estúdio em casa, ao lado do meu quarto. Normalmente, acordo cedo e tenho logo muitas ideias depois de tomar café – agora, por acaso, ando mais numa de chá… Tenho logo muitas ideias de manhã e, às vezes, tenho um bocado de preguiça de tomar banho e de me vestir para ir para o estúdio gravar: como não quero que as ideias escapem, quero aproveitá-las quando estão frescas, não me importo nada de ir para o estúdio de pijama. Até porque estou sozinho! Naturalmente, se estiver alguém casa ou se estiver alguém comigo no estúdio, não estou de pijama – não é o meu género”.

É verdade que o Mirror de Rui Maia pede mais uma bola de espelhos do que apela ao imaginário dos contos de fadas, porém, é incontornável perguntar: se a bruxa má da Branca de Neve pergunta ao seu espelho se existe alguém mais bela do que eu, o que é que Rui pergunta? O senhor que abre os braços da sua música a tantos colaboradores, que oferece aos seus ouvintes a total liberdade de interpretação e que convida todos a embarcar no seu périplo musical, senta-se, então, em frente a esse seu espelho imaginado e coloca a sua questão: “existe alguém mais sincero do que eu?”. É difícil pedir mais.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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