Maze: “O centro do labirinto está dentro de mim”.
Sempre com o hip hop no horizonte, só ao fim de 20 anos de carreira é que André Neves se apresentou em nome próprio. Expôs as suas entranhas e, ao mesmo tempo, vestiu de palavras a sua vida, aquela que bebe e a que sacia. Um dos lados do pentágono que são os Dealema, Maze é um homem em missão.
Em plenos anos 90, Portugal era tomado de assalto por uma série de projectos de hip hop nascidos no Norte mas determinados em conquistar o país: um deles eram os Dealema. É nesse pentágono que surge Maze, um dos MCs cujas palavras, nos últimos 20 anos, se têm tornado hinos de uma geração. Uma década volvida da estreia dealemática, Maze arriscou-se, pela primeira vez, a solo, com um EP. Foi preciso esperar outros 10 anos para que André sentisse a maturidade suficiente para o seu primeiro longa-duração. Em Maze, o disco que esteve à beira de se chamar “Entranhas”, o hip hop é regido pelo piano e embalado pela vida transposta em liberdade. Maze é a declaração de intenções de um homem que se divide entre a música e as artes marciais, entre a interpretação, a edição e a divulgação. Pode parecer um labirinto mas é (apenas) Maze.
Um por todos.
Em 1993, o brasileiro Gabriel O Pensador editava o seu álbum de estreia, homónimo – o mesmo que havia de dar origem à sua primeira digressão europeia. Em 1994, no roteiro, surgia o Porto: se fosse preciso encontrar um pontapé de partida para a explosão de colectivos de hip hop no Porto, esse poderia ser um deles. No público, estava, entre outros, André Neves. “Estava lá – aliás, esse foi o primeiro grande concerto que reuniu quase toda a gente da velha escola do hip hop do Porto”, recorda Maze. “Alguns já se conheciam, havia alguns grupinhos… No meu caso, eu estava com um grupo de amigos que conhecia outro grupo de amigos onde estavam outros membros de Dealema. Foi um factor de ligação, não só de Dealema mas de Mind Da Gap, Reunion of Races: havia muita gente nesse concerto. [Foi] incrível: o Gabriel O Pensador estava com uma perna partida e deu um concerto muito bom – de muletas. Espectacular”. Os outros quatro dealemáticos já se tinham cruzado noutros projectos mas Maze era o forasteiro – talvez por ser do Porto. “Eles faziam vida em Gaia. O Fuse também era do Porto mas tinha um elo de ligação, que era o Expeão. Já tinham outros projectos, os Fullashit, o Mundo[Segundo] e o DJ Guze tinham os Factor X”, explica. “Eu já estava na cultura [hip hop], pintava, fazia graffiti, mas estava um bocado indeciso em relação a rimar as coisas que escrevia. Quando os conheci, comecei a ler-lhes algumas coisas… Lembro-me de, uma vez, estar no 2º Piso [o centro criativo dos Dealema] e o Mundo dizer-me “tu tens que cantar isso, tens mesmo que rimar isso que escreveste”… Comecei a aparecer nos ensaios, a sinergia começou a acontecer e decidimos formar, os cinco, os Dealema”. Maze podia ser do Porto mas, na narrativa do pentágono, o Liceu de Gaia assume suprema importância. “A primeira vez [que actuámos] foi numa festa de Carnaval – incrível. Há algumas imagens – não sei se estão na internet mas nós temos um documentário na calha e essas imagens vão aparecer de certeza. Demos lá alguns concertos: o Mundo, o Expeão e o DJ Guze estudaram lá e eu tinha alguns amigos que também estudaram lá, por isso, ia lá parar algumas vezes”.
Assim nascia aquele que se viria a tornar um dos principais nomes da cultura hip hop portuguesa. “H.I. Vedeta”, por exemplo, é concebida em 1995. “Já estávamos juntos em 1995 mas assumimos a data de edição da nossa maqueta, Expresso do Submundo, de 1996, como sendo o berço e o nascimento de Dealema”, esclarece Maze. “Aliás, antes do “H.I.Vedeta” existem algumas músicas em inglês de Dealema – não as tenho comigo e não tenho bem a certeza se as quero ouvir mas lembro-me delas (risos)”. Mesmo que haja memórias difusas dos últimos 20 anos, todas elas, em breve, estarão reunidas no documentário que os Dealema estão a preparar. “Analisas, de forma diferente, o que aconteceu – sabemos o que aconteceu e o que a história conta mas, com a maturidade e com a idade, olhamos para trás e temos mais distância para perceber porque é que aconteceu assim. Analisamos os tempos que eram e as diferenças para o que acontece agora e é uma mudança abismal: no meio musical, na sociedade, nas relações entre as pessoas, nas amizades – em tudo. Essa reflexão (sempre que vamos ao baú ou mesmo quando ouvimos as nossas músicas, feitas em 1996) leva a perceber e avaliar de outra forma o passado”, conclui.
Entre outros, os Wu-Tang Clan são uma das grandes influências de Maze – e, de certa forma, os Dealema têm sido sobejamente comparados ao colectivo nova-iorquino. Maze recorda-se, por exemplo, de um documentário que o deixou preso ao ecrã da RTP2. “Na altura, [os Wu-Tang Clan] eram uma coisa completamente diferente daquilo a que estávamos habituados. Era um colectivo de muitos MCs, todos com um estilo diferente, a falar de coisas diferentes, com outras temáticas. Mesmo os telediscos e a imagem deles era completamente diferente e aquilo chamava logo a atenção. Lembro-me perfeitamente – tenho essas imagens muito frescas na minha cabeça – de apanhar esse documentário. Não era nada comum: a televisão não passava hip hop, quase ninguém conhecia hip hop. Lembro-me de ficar colado à televisão, a ver o documentário todo – anos mais tarde, consegui encontrá-lo na internet, consegui revê-lo, está mesmo no YouTube. É interessante: eles estão no bairro, falam com as pessoas, existe um cypher que é feito num parque… É um documentário interessante e é uma referência para nós, Dealema, termos para o nosso próprio documentário porque a abordagem é muito actual. (…) Há muita gente, no hip hop nacional, que nos compara e eu entendo, entendo bem: não só porque eles nos influenciaram mas porque nós temos essas personalidades diferentes e abordamos os temas de forma diferente; ao mesmo tempo, quando formamos o colectivo, quando formamos o pentágono, a coisa funciona com mais força. Os temas deles eram muito vastos – tal como os nossos: tanto tens um MC a falar de uma coisa altamente espiritual e metafísica quanto tens outro a falar de uma coisa mais crua, de realidade de rua e de bairro, mais material. E isso acontece em Dealema muitas vezes”.
Uma coisa é certa: quando, em V Império, os Dealema encenaram “Escola dos 90”, estavam a fazer uma espécie de tomada de consciência da sua relevância e da sua preponderância na cultura portuguesa. Já não eram putos, eram gajos adultos que provocavam tumultos na indústria musical. Se dúvidas houvesse, elas são reduzidas a pó quando a primeira rádio nacional, totalmente dedicada ao hip hop, hiphopradio.pt, escolhe uma canção dos Dealema para o seu arranque de emissões. Qual? O referido hino de 2008. “Nós não falamos sobre isso…”, dispara com modéstia. “Partilhámos na nossa página, soubemos da notícia mas ficámos com muito orgulho. É um marco histórico: é a primeira rádio de hip hop nacional e escolheu uma música nossa e, ainda por cima, uma música que não é muito fácil. As coisas que dizemos ali são um bocado controversas mas são reais e acho que, cada vez mais, somos levados a sério e a imagem geral do hip hop mudou e, se calhar, daqui a uns anos, podemos ser vistos com os mesmos olhos que os cantautores de Abril foram. Por isso, fico muito orgulhoso”.
Todos por um.
A paixão de André pela música nunca se quedou, apenas, nas suas rimas: chegou a trabalhar em lojas de discos, dando por si, sem receber ordenado – porque tinha sido todo gasto em discos. “Quase todo. Sim, trabalhei várias vezes em lojas. Aliás, o meu percurso musical foi quase sempre acompanhado por um part-time que me permitisse fazer música também e a música sempre foi uma paixão. Cheguei a trabalhar em lojas de música… E sim, parte do ordenado ia para casa em vinil – não ia em notas”. Ao longo dos anos, assumiu também um papel de divulgador e editor: criou, por exemplo, a Faca Monstro. São diferentes raios de acção mas que “a mim, completam bastante. A Faca Monstro é um grupo de produtores de electrónica do Porto que percebeu que estava a fazer beats para estarem num computador: porque não pôr isto cá fora? Foi numa altura em que as plataformas se começaram a desenvolver e as pessoas começaram a perceber que podiam usar um bandcamp ou um soundcloud e pôr a música cá fora: decidimos começar a mostrar a música electrónica mais underground que era feita no Porto. Entretanto, estamos um bocado parados mas temos todos projectos, alguns internacionais; temos vidas ocupadas mas qualquer dia vamos voltar a pôr a Faca Monstro no activo. Por outro lado, há quase 10 anos, tem uma estreita ligação com a Red Bull Music Academy. “Foi um convite para ser o chamado MR X, que é um embaixador da RBMA. No fundo, é uma pessoa atenta, que vai escolhendo talentos possíveis para pertencerem a essa comunidade Red Bull que está sempre a pesquisar, sempre à procura de novos talentos de cada país para uma edição mundial. Isso dá-me muito prazer: o estar atento. Gosto de música e gosto de fazer esse trabalho – de escavar, de perceber as tendências, perceber como é que a música é feita, conhecer as pessoas. Isso prolongou-se pela Oub’lá FM [na Red Bull Music Academy Radio] e pelo Ginga Beat [programa na Vodafone FM]: dá-me muito gosto mostrar pessoas que estão nas suas garagens ou nos seus quartos, a fazer música, ou outros mais conceituados. Dá-me muito gozo porque, em 1996, eu também era uma pessoa assim, que mandava uma cassete para o José Mariño, para a Antena 3 – estou a retribuir, estou só a continuar o ciclo. Mais virão a seguir”.
Mas os ciclos de Maze também se sucedem. Depois de alinhar nos Dealema há cerca de uma década, a Casa Fernando Pessoa e Rui Miguel Abreu (jornalista, radialista e um dos nomes mais importantes na divulgação do hip hop em Portugal) lançaram o desafio de recriar um poema do autor. Daí, nasceu um novo projecto, os Subverso, partilhado com o produtor Soma. O convite é feito em 2008 mas só vê luz do dia cinco anos mais tarde. “Fico um bocado ansioso porque, às vezes, o tempo é muito demorado”, confessa. “Essa música foi feita, talvez, cinco ou seis anos antes de ser efectivamente lançada e de o CD sair. Foi um desafio excelente: foi muito bom aceitar esse desafio do Rui, a interpretação de um poeta que adoro, poder musicá-lo… Mas foi muito tempo e, normalmente, esse tempo de demora é saturante e causa alguma ansiedade. É um processo demorado e, normalmente, os músicos são um bocado chatos no processo criativo, querem tudo com um perfeccionismo exagerado. Às vezes, é um projecto chato desde o primeiro dia de criação até sair a mistura final – é muito tempo. Apesar de, hoje em dia, a coisa acontecer de forma mais rápida: os miúdos, em casa, de um dia para o outro, conseguem ter uma música na rua, logo no YouTube e, se for preciso, logo com milhões de visualizações. Os tempos são diferentes, são muito diferentes. No meu caso, apesar de causar alguma ansiedade e de querer que as pessoas consumam a música que fiz, acho que consigo fazer música intemporal – não toda mas a maior parte das músicas que faço, ou pelo menos os temas (não falo da sonoridade porque essa está em constante mutação) e as palavras que uso são intemporais. Portanto, a música que estou a fazer agora ou que fiz há 10 anos, é absorvida quase da mesma forma. Se ela sair daqui a 10 anos, vai ser absorvida quase da mesma forma – por isso, isso não me preocupa assim tanto”.
Para não ter preocupações nem pressões nem expectativas externas, o seu primeiro álbum a solo surgiu sem que ninguém o esperasse. Maze, o disco, sucede a Homem em Missão, editado em 2007, segundo o seu criador, “um EP curto que pouca gente tem e pouca gente conhece”. Em 2012, havia de criar um alter-ego, Spaced Out, para a publicação de outro EP, Micromegas. No ano em que os Dealema assinalavam os seus 20 anos de actividade, Maze sentiu a maturidade suficiente para mergulhar no seu próprio longa-duração: um disco que foi “feito” várias vezes. “Já tentei fazer este álbum algumas vezes”, admite, referindo-se a criações que, qual desígnio divino, se perderam em buracos negros do mundo cibernáutico. “Fazendo uma retrospectiva, acho que não iria fazer um disco tão forte quanto este ou com o qual me identificasse tanto. Eram coisas mais cruas: eu era outra pessoa, era bem mais jovem e, neste disco, sei o que é que estou a dizer e quero dizer aquilo. Isso não iria acontecer, certamente, por isso, se calhar, foi mesmo desígnio divino ter perdido esses discos. Agora sim, sentia-me com maturidade e queria mesmo fazê-lo”. Maze pode surgir a solo mas os Dealema nunca desaparecem da sua existência. “Durante estes anos todos, sempre me vi como uma peça de Dealema: isso chegava-me e sempre me satisfez bastante tocar com Dealema e escrever letras para Dealema. Claro que, num álbum a solo tens mais espaço, podes abordar outros temas e tens mais espaço de antena, podes pôr mais palavras tuas – e esse espaço é interessante para eu dizer coisas que queria dizer há muito tempo”. Porém, Maze, o disco, será sempre um álbum de linhagem dealemática, uma decisão “totalmente pensada: queria ter o Mundo como produtor executivo do meu disco – gosto da visão dele, queria gravar o álbum com ele e queria ter a mão dele em todas as músicas. O DJ Guze acompanha-me nos concertos – fazia todo o sentido. O Fuze e o Expeão não estão lá porque não aconteceu dessa forma (e não temos que estar sempre em todos os discos uns dos outros) mas eles estão lá: estão lá nas rimas e no que digo e no que sinto. Eles estão lá. Essa parte dealemática foi totalmente cerebral e pensada e sentida”.
As palavras disparadas por Maze, ao longo destas 15 canções, encontram beats e instrumentais de figuras consagradas – como Sam the Kid ou Ace – mas também de novos nomes – como Raez ou Sair. “Gosto de ouvir antes de escrever – normalmente, é o meu processo criativo”, narra. “Oiço o instrumental e percebo se tenho coisas para dizer em cima daquela emoção. Pode ser do maior superstar produtor internacional ou pode ser de um puto que instalou o Fruity Loops e fez o primeiro beat – se eu me relacionar, está bom. Claro que fui encontrando pessoas que fazem parte do meu meio e fui-lhes pedindo instrumentais porque queria fazer um disco: alguns já me tinham passado alguns beats, outros fui pedindo mais em cima da hora, enquanto estava a fazer o álbum. Fui sentindo aqueles ambientes e foi isso que me levou a escolher essas pessoas”. Em comum, essa dezena e meia de obras tem um elemento: o fio condutor do álbum é mesmo o piano. “Do início ao fim”, concorda. “Foi acontecendo, não programei isso assim. Gosto do piano: gosto do piano e gosto do baixo, são os sons com os quais me relaciono. No disco, aconteceu dessa forma e, depois, trouxe-me algumas ideias que ainda não concretizei mas que penso ainda fazer – tocar o disco com piano e contrabaixo. Fazê-lo dessa forma: não sei se vai acontecer mas vou tentar”.
Há outro elemento que atravessa o primeiro álbum a solo de Maze: ele chamou o seu nome para baptizar o disco mas, por se debruçar sobre a vida do seu autor, chegou a ter como título “Entranhas”. Aliás, abra-se o Spotify é assim mesmo que surge: Entranhas. “A Banzé, que é parceira de edição, pôs o disco como Entranhas por falta de comunicação – eu não comuniquei!”, atira André em forma de mea culpa. “Com o designer, quando estávamos a fazer a capa final, chegámos à conclusão que funcionava bem sem nome: é um primeiro álbum, é normal que os primeiros discos sejam homónimos, “vai assim, sou eu, é Maze”. Mas não comuniquei com a Banzé, que fez o upload no Spotify. Se calhar, é mais uma casualidade divina: se calhar, tinha mesmo que se chamar Entranhas ou Vida… Há muitos mais nomes e pontos que aparecem em todas as músicas. É um disco que tem muitos detalhes: se as pessoas conseguirem esmiuçar, conseguem perceber que tem ali uns pontos de encontro e isso é interessante”.
André é do Porto mas, hoje, vive em Lisboa. Maze é rapper mas, hoje, é nome grande nas artes marciais. “De facto, vim para Lisboa com outro projecto: vim difundir o Kuk Sool Woon, a arte marcial tradicional coreana que pratico já há alguns anos – é esse o meu objectivo, estou aqui com essa missão”. Mas, uma coisa pode levar a outra. “Estar em Lisboa também me facilitou um pouco na área musical: as coisas, aqui, funcionam de outra forma”, considera. “O pessoal do Porto sabe bem como isso funciona e fala bastante disso – a comunicação social está bastante concentrada aqui porque é a capital. Não vou dizer que não me é útil estar aqui – claro que sim. Continuo a fazer a mesma música que fazia e, hoje em dia, digitalmente, podemos fazer música em qualquer parte do mundo e com qualquer pessoa, mas as dinâmicas musicais aqui em Lisboa são fortes”. Não se pense, no entanto, que, desta forma, o labirinto de Maze se alterou. “O final do labirinto está cá dentro: não está em lado nenhum. Esse centro do labirinto está dentro de mim”. Ou, como ele próprio diz em “De Marte Para Amar-te”, “a arte existe para tentar libertar-te” – será esse o centro deste labirinto?