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Orelha Negra: “A música pela música”

Orelha Negra: “A música pela música”
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Magnífico jogo de memórias, os Orelha Negra são o sumário perfeito da história da música.

 

Se Portugal tivesse uma super-banda, seriam os Orelha Negra – o quinteto, que se assumiu enquanto tal em 2008, está prestes a editar o seu terceiro álbum mas mantém-se fiel ao ímpeto que o fez nascer: uma vontade imensa de completar um puzzle que nunca estará concluído. Aquele que une a música que os apaixona. A de ontem e a de hoje, a que não tem cor e é avessa a géneros. Tudo cabe no caldeirão dos Orelha Negra mas, depois de passar pelo seu olhar, nada fica igual.

 

2016 não podia ter começado da melhor forma. Ou com menor risco. À semelhança do que tinham feito com o registo anterior, os Orelha Negra abriram o peito às balas – que é como quem diz, ocuparam o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, em Janeiro, para um concerto (esgotado) narrado com os inéditos que farão o alinhamento do seu terceiro álbum (duas semanas depois, repetiriam a experiência no Hard Club, no Porto). “Acho que isso faz parte do nosso processo para a composição do disco”, começa por explicar Fred Ferreira. “Serve para definir um deadline, para termos as músicas feitas e para, depois, terminarmos os discos. Neste caso, tínhamos a primeira fase de composição das músicas, fizemos o concerto no CCB e fomos para a segunda fase. Essencialmente, [fazemos isto] para termos uma meta que nos obrigue a ter as músicas feitas. Senão, demoramos mais”, continua.

Quando se pensa no resultado final da obra dos Orelha Negra, é fácil imaginar que a fase de composição os encontra, quais cientistas, de tubo de ensaio em riste, com muitas experiências, diferente de tudo o que já se viu antes. Francisco Rebelo, porém, desmistifica: “O processo criativo é semelhante ao de uma banda rock. Vamos para uma sala de ensaios e estamos ali, a experimentar ideias, até chegarmos a alguma coisa”. Para o terceiro álbum, pouco mudou. “Em Agosto ou Julho do ano passado, fomos para Famalicão, para um estúdio – a única diferença foi que, como estávamos num estúdio e não na sala de ensaios, muitas das coisas que fomos compondo fomos logo gravando, com alguma qualidade”, prossegue. Seguiram-se meses de trabalho árduo, como descreve o baixista. “Novembro e Dezembro foi a fase de hard work, com os ensaios, montar as estruturas e preparar os arranjos para tocar ao vivo – que são necessariamente diferentes do que vai ficar no disco (é impossível tocarmos todas as coisinhas que pomos nos discos, tínhamos que ter mais músicos)”. Os tais concertos de apresentação culminam, em última análise, como prova de fogo a estas canções. “Acabamos sempre por retirar algumas conclusões: coisas que funcionam, coisas que não estavam previstas mas que aconteceram no concerto e que incorporamos e o inverso, coisas que estavam previstas mas que, por alguma razão, achamos que não valem a pena e saem”, conclui Francisco.

A verdade é que, quando subiram ao palco lisboeta, porém, os Orelha Negra estavam arredados dos olhares do público há um par de anos. O que, provavelmente, acresceu alguma adrenalina a este auto-imposto teste. “No caso do CCB, acho que íamos confiantes porque tínhamos estado quase dois meses a ensaiar praticamente todos os dias. Íamos confiantes que estávamos preparados para aquele teste. Essa adrenalina de tocar – quando não tocávamos juntos quase há dois anos –, mais a adrenalina de tocar só músicas novas, que as pessoas não conhecem, numa sala importante, que estava cheia – não sabíamos se as pessoas iam gostar –, com as luzes novas…  Era tudo novo: até o pessoal da nossa equipa tinha ouvido pouco as músicas”, recorda Fred. Tantas novidades dão vontade de viajar no tempo: até 2008. (Mas antes: o público rendeu-se às canções que foram apresentadas – prova superada.)

Os Orelha Negra já existiam antes dos Orelha Negra existirem. Reuniram-se em palco pela mão de Sam The Kid e enquanto banda que acompanhava a digressão do autor de Pratica(mente). “Embora já nos conhecêssemos – eu e o Fred já tínhamos feito uma aventura, com o João Gomes, uma vez, na ZDB –, só começámos a tocar juntos por causa dos concertos do Sam. Foi nessa altura que nos juntámos como banda: daqueles anos todos em que estivemos na estrada, nos ensaios, nos soundchecks, cresceu a ideia de fazer uma cena instrumental”, recorda Francisco Rebelo. Desses palcos, seguiram, em Outubro de 2008, para um outro, o do Musicbox, em Lisboa, onde se estreiam. “Ao início, a ideia era tocar em clubes mas rapidamente começou a sair”, conta Fred. “A cena foi crescendo: fizemos o concerto no MusicBox, saiu o primeiro disco, a cena teve uma aceitação porreira, as pessoas reviram-se naquilo, gostaram da música, das ideias da capa, da sleeveface, do poster… ” As palavras de Francisco parecem demasiado rápidas mas foi assim, de facto, que tudo aconteceu.

Do Musicbox à edição do primeiro disco, foi um instante. Em 2010, o homónimo chegou aos escaparates com estrondo: não só pelo line-up do grupo mas por ser “anónimo” – sem vocalista e também sem rosto. Os Orelha Negra assumiam a lógica sleeveface, onde aos corpos são agregadas imagens de capas de discos. “A ideia era que as pessoas se focassem na música: não era importante, para nós, revelar quem éramos enquanto instrumentistas ou músicos”, assume Francisco. “O que queríamos era que as pessoas ouvissem a música e se focassem nisso e também é isso que queremos quando tocamos. Aquilo que gosto de pensar sobre o que as pessoas pensam quando ouvem a nossa música é que estão a fazer uma viagem – mas é a viagem delas, não é a nossa. Nós temos a nossa viagem: quando compomos, quando tocamos”, continua. “Acho interessante, como consequência do que fazemos, as pessoas poderem ouvir uma cena e, cada um delas, traçar um percurso dentro daquela paisagem ou daquele filme. A cena de Orelha, para mim e é algo que partilhamos todos, é a música pela música. Ter um projecto instrumental é fazer prevalecer a música pela música”.

 

Quem são, afinal, os Orelha Negra? São Francisco Rebelo e Fred Ferreira, João Gomes, DJ Cruzfader e Sam The Kid. São cinco vultos da panorama nacional, vindos de várias experiências diversas, de diferentes géneros musicais e com distintas influências. São cinco mas, quando estão em palco, nenhum tem o “microfone”. Os Orelha Negra começaram instrumentais e é assim que continuam. Primeiro estranhou-se mas já se entranhou há muito. Segundo Fred, “não há o hábito de bandas instrumentais – e bandas de hip hop instrumental ainda há menos. Acho que, ao princípio, o pessoal estranhava mais. Hoje em dia, já estão mais habituados e acho que, se agora puséssemos um cantor, iam estranhar”. Parte do ímpeto público é justificado pelo facto de cada álbum dos Orelha Negra  ser sucedido por uma mixtape – e, essas sim, estarem repletas de vocalistas. “Não somos nós quem controla o processo criativo daquilo que se faz nas mixtapes: podemos convidar alguns artistas a fazerem uma versão, uma remixe, a rimarem, mas há pessoas que, espontaneamente, se oferecem e apresentam coisas de que nós gostamos”, esclarece Francisco. “Mas os Orelha não têm, no seu plano, cantores – a mixtape é sempre uma consequência do d
isco, não é uma razão. Se calhar, as pessoas que apanharam os Orelha através das mixtapes podem ter essa confusão, se não acompanharem o resto, mas acho que, agora, as coisas estão mais claras”, conclui. A estranheza inicial foi, portanto, abraçada por quem segue os Orelha Negra. “Pelo menos os fãs e as pessoas que têm os discos e que conhecem, já não estranham mas, no início, sim, havia estranheza. “Então, mas isto é só beats?” Até para nós era estranho porque nunca tínhamos passado por essa experiência”, concorda Francisco. E sim, ainda há pessoas que lhes perguntam se o próximo disco vai ter voz. “Menos”, avalia Fred. “Mas ainda há – até alguma imprensa”, remata Francisco.

O ano dos Orelha Negra começou no palco e continua no palco: depois da passagem avassaladora pelo 22º Super Bock Super Rock, rumam, por exemplo, a O Sol da Caparica e também ao Vodafone Paredes de Coura. Uma vez que as suas iniciais são ON, a pergunta impõe-se: há alguma coisa que esteja Off para os Orelha Negra? “Neste momento, acho que não”, sorri Francisco. “Estamos em plena laboração para terminar um disco, portanto, está tudo on”. O interruptor dos Orelha Negra está em cima: venha de lá esse álbum!

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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