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Primavera Sound Porto: serenatas com chuva

Primavera Sound Porto: serenatas com chuva
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Ao longo de quatro dias, mais de 140 mil pessoas passaram pelo Parque da Cidade, no Porto. A 11ª edição do festival vai decorrer entre 7 e 9 de Junho de 2024.

A fasquia estava alta, talvez demasiado alta – e as dores de crescimento, que já no passado se tinham notado, tornaram-se evidentes à 10ª edição. A previsão (e confirmação) de chuva intensa nos primeiros dois dias de festival não facilitaram o arranque, marcado, sobretudo, pela alteração da localização do palco principal que, apesar de até poder albergar uma maior quantidade de público, retirou ao Primavera Sound uma boa parte da sua mística. O magnífico anfiteatro natural que, em 2023, recebeu o Palco Vodafone era o espaço a que a audiência do festival se tinha habituado aos concertos dos maiores cabeças de cartaz – e a disposição e formato mais tradicional do Palco Porto, por onde passaram Kendrick Lamar, Rosalía, Pet Shop Boys e Blur, subtraiu dessas visitas a aura que só se encontra(va) no Primavera Sound. Porém, isso não fez com que fossem menos mágicos.

Mais de 140 mil pessoas passaram pelo Parque da Cidade, no Porto, que pela 10ª vez recebeu o Primavera Sound. Este era, porventura, um dos cartazes com maiores estrelas – e muito além dos já referidos cabeças de cartaz. Por ordem cronológica, podiam citar-se as incríveis reviravoltas jazzísticas de The Comet Is Coming ou a festa com electro-pop de Alison Goldfrapp; a pop doce de Arlo Parks ou os desvarios progressivos dos Mars Volta; a bola de espelhos que rompeu o céu carregado com Fred Again… ou o experimentalismo entre a electrónica e o clássico dos Jockstrap; o mergulho irónico de Deixem o Pimba em Paz ou a voracidade de um hip hop cheio de fúria e tradição com Pusha T; o shoegaze a nadar em country dos Wednesday ou o punk electrónico de Le Tigre; a viagem o synth alternativo dos Nation of Language ou a languidez de Julia Holter…

PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto

Talvez tenha este sido, também, o cartaz, em Portugal, com maior presença feminina: de líderes a músicos de suporte, numa imensa variedade e diversidade de géneros, abordagens e ritmos que confirmam que se os festivais trazem menos mulheres aos seus alinhamentos isso deve-se, apenas, a falta de vontade. Ou imaginação. Se, do ponto de vista da organização do público em geral, as condições oferecidas foram marcadas por um upgrade – com facilidade de acesso a bares e casas de banho, maior zona de restauração –, o piso revelar-se-ia um verdadeiro desafio para espectadores com mobilidade condicionada. Também aqui, para se albergar variedade e diversidade é preciso vontade: as plataformas distantes e vazias terão deixado uma mensagem gritante…

Quatro anos depois da estreia neste espaço – e apenas alguns meses após a sua última passagem por Portugal –, Rosalía estava de volta ao Primavera Sound: mas esta Rosalía deixou a anos-luz a “menina” de 2019. Segura, arrojada, com um álbum que a encontra imersa na folia do reggaeton, provou que é uma das grandes estrelas pop do momento, na confiança como domina o palco, como conquista o público já rendido antes sequer do primeiro acorde. Nunca o flamenco foi tão universal mas, provavelmente, nunca Rosalía deixou o seu flamenco de raiz tão permeável aos contornos das abordagens contemporâneas.

PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto

Como o clássico se pode tornar contemporâneo foi o que fizeram os Pet Shop Boys, no dia seguinte: num verdadeiro desfile de históricos hinos, mostraram que a música – quando é boa, quando é inovadora, quando não se deixa reger ou render perante dogmas – pode ser eterna. Por isso, momentos como “West End Girls” ou “It’s A Sin”, com várias décadas de existência nos ombros, foram dançados, aplaudidos e vividos com a mesma carga que assistiu ao seu nascimento – seguidas por uma encenação cuidada, luxuosa e sempre moderna.

PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto

Um concerto de New Order é uma celebração – e o que o Palco Vodafone recebeu (com a sua magnífica encosta repleta de público), na derradeira noite de Primavera Sound Porto, foi isso mesmo: uma celebração. Talvez a plenitude revelada em 2019, no Vodafone Paredes de Coura, não tenha encontrado eco no Parque da Cidade, com a banda menos solta do que no festival minhoto, com Bernard Sumner mais frágil do que então, mas as canções prevalecem sobre tudo – ou sobre quase tudo. Quando, já na recta final, o colectivo de Salford se vê sem som, num momento já rumo ao clímax do espectáculo, tudo foi deitado por terra; primeira tentativa de regresso e nova falha… Uma banda como os New Order poderia, perfeitamente, ter atirado a toalha ao chão mas o respeito pelo seu público fez com que ousassem um terceiro arranque – e ainda bem porque, assim, o frenesim de “Blue Monday” só se tornou mais colorido e “Love Will Tear Us Apart” só se revelou ainda mais apaixonado. O amor pode ser um lugar estranho mas, com os New Order ou nas viagens ao passado dos Joy Division, cada um de nós apaixona-se por essa estranheza. Uma vez, outra e ainda mais.

PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto

Sem qualquer pudor, e de forma honesta, o cartaz do Primavera Sound 2023 trazia em dois dos seus regressos as grandes atracções: por um lado, e depois de ter falhado Portugal devido à pandemia, em 2020, um Kendrick Lamar aterrado numa posição na galáxia da música actual muitos (tantos!) patamares acima dos seus pares; por outro, uns Blur que se preparam para voltar aos álbuns e que, com mais de 30 anos de carreira, se continuam a comportar como os miúdos que tornaram hinos pop as inspirações em madchester e no shoegaze. Kendrick estreara-se no Parque da Cidade em 2014, os Blur tinham arrasado o festival em 2013 – os seus regressos, porém, foram em tudo distintos.

Regresse-se à ideia de que Kendrick Lamar está numa liga só sua: a cada novo álbum, o patamar criativo é elevado, a sua poesia revela novos contornos, as suas melodias são mais contagiantes e a vida que narra – tão sua, tão localizada, tão específica – consegue encontrar espelho e aclamação num público que, com ele, partilha apenas a paixão pela música. Para se compreender e ser encantado pela obra de Kendrick Lamar não é preciso, sequer, ser-se fã de hip hop – porque o que o homem que cresceu em Compton traz vai muito além desse género. No entanto, o espectáculo que Kendrick apresentou no Porto soube… a pouco. Muito mais exercício de música poetizada do que um concerto de um grande palco num grande festival, as abordagens despidas e cruas que poderão fazer a diferença numa sala fechada, aqui, enquanto a chuva não dava tréguas, tornaram-se efémeras – ainda pior, não deixaram a marca que se espera de alguém como Lamar. As canções estavam lá mas a narração perdeu ritmo; o poeta estava lá mas pareceu apenas “cumprir”. E, para quem sempre tinha sido visto com o poderio de uma banda de suporte, este homem “orgulhosamente só” em palco tornou-se apenas “um homem” – quando, na verdade, Kendrick Lamar é uma lenda dos tempos modernos.

PRIMAVERA SOUND PORTO 2023 _ © Hugo Lima | hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography | instagram.com/hugolimaphoto

Em Julho, os Blur vão dar dois concertos em nome próprio no estádio de Wembley, em Londres – e se isso, aliado ao calendário que traz “The Ballad of Darren” aos escaparates no dia 21 do próximo mês, não prova o momento inolvidável que o quarteto está a viver, a hora e meia no Palco Porto foi a cereja no topo deste bolo. Não foram precisas explosões nem confettis nem mudanças de roupa para mostrar a qualidade destes músicos – e destas canções. Quando se preparam para editar o seu nono longa-duração, os Blur podem já não ser os reis da pop inglesa mas estão (também eles) num campeonato só seu. Aquele onde, ao fim de 30 anos de percurso, ainda são muitos os que se deixam conquistar pela “música estúpida” que eles fazem (Damon Albarn dixit). Ao som dos Blur, dança-se, sente-se, reflecte-se. Apaixonamo-nos uma e outra vez, sentimo-nos explosivos com “Song 2”, livres com “Girls & Boys” mas também vulneráveis com “Tender”. Compreendemos que ainda há caminho para percorrer com o novo “The Narcissist” mas sabemos que a grande consagração – a deles, a nossa – vem quando gritarmos a plenos pulmões “it really could happen”, quando já sabemos que “The Universal” anuncia o final do concerto.

Um espectáculo dos Blur prova a verdadeira magia da música: aquela onde bastam meia dúzia de instrumentos (ou ainda menos) para se fazer história; aquela que só precisa de um homem na frente do palco, que não teme atirar-se ao seu público da mesma forma que se atira às suas canções; aquela onde encontramos refúgio para os nossos medos e as nossas alegrias, as nossas falhas mas também as nossas conquistas. Com os Blur somos felizes, sempre. Voltando a “The Universal”, aquele hino que, muitas horas depois, ainda entoamos nas nossas cabeças, com os Blur, todos os dias são o nosso “lucky day”. E não, não se pode pedir mais nada quando a música vem de um lugar tão especial e nos leva a lugares ainda mais especiais, que temos em nós mas não sabíamos. “When the days they seem to fall through you, well, just let them go”.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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