Primeira edição de festival contou com mais 112 mil pessoas. O MEO Kalorama regressa a Lisboa em 2023, entre 31 de Agosto e 2 de Setembro
Há muito passível de ser dito em relação à primeira edição do MEO Kalorama: que é uma boa maneira de “encerrar” a época de festivais (que ainda tem, pela frente, o Iminente e o MIL, por exemplo), que é uma forma inteligente de tirar partido desse anfiteatro natural que é o Parque da Bela Vista (que é, basicamente, reduzido à utilização do Rock in Rio Lisboa), que reuniu uma amálgama de público genuinamente interessado em música (e não em momentos instagramáveis). Podia, também, dizer-se que, como em tudo o que começa, há pormenores que precisam de ser repensados (sobretudo a disposição do Palco Colina, que fez com que, algumas vezes, houvesse colisões de som com o Palco MEO). Porém, acima de tudo, quando se falar desta primeira edição do MEO Kalorama, o que é importante cravar na memória são os concertos: por um lado, terá sido este o melhor cartaz de 2022; por outro, os grandes nomes fizeram aquilo que deles era esperado (ou talvez ainda mais!) e tornaram os seus espectáculos momentos verdadeiramente inesquecíveis. E houve muitos.
Talvez seja bizarro encontrar os sons nocturnos de James Blake quando o sol ainda vai aquecendo as encostas da Bela Vista – mas isso não retirou um pingo de emoção ao regresso do britânico a Lisboa. Num alinhamento que deixou (praticamente) para trás a exibição de Friends That Break Your Heart, editado no ano passado, viajou-se pela introspecção mas também pela explosão dançante – a mesma que, mais tarde, havia de ser encontrada na actuação dos históricos Kraftwerk (com direito a 3D, claro!) e dos imparáveis Chemical Brothers. E, por falar em dançar, Jessie Ware deixou bem claro que a fúria pela pista expressa em What’s Your Pleasure? continua no seu horizonte – e mesmo quando mergulha num lado mais soul é pop que respira. Pop da melhor casta, elegante e cintilante. Ao segundo dia, e a par de Róisín Murphy, Ware foi a excepção à regra-rock que imperou no MEO Kalorama – que esgotou para abraçar uma nova viagem dos Arctic Monkeys a Portugal mas que se deixou render perante o homem que se torna gigante quando sobe ao palco e que responde por The Legendary Tigerman. Por muitos concertos do homem-tigre a que já se possa ter assistido, a forma voraz como se atira às canções, como se entrega ao público, como vive a música, nunca deixa de surpreender. Ou de arrepiar. Ou de provocar arrepios surpreendentes.
Mas houve mais estrelas-nacionais a deixar a sua marca no MEO Kalorama: das incursões do Palco Futura (por onde passaram, por exemplo, D’Alva ou You Can’t Win, Charlie Brown) às viagens de nomes como Xinobi ou Moulinex no Palco Colina ao arranque com Rodrigo Leão – e, claro, a esse vulto maior da música portuguesa que responde por Ornatos Violeta. Mesmo quando Manel Cruz entra mal e assume “eu fodi isto tudo”, os Ornatos são grandes. Enormes. São transversais e intemporais. São entoados, provavelmente, por muitos que, durante os anos da actividade da banda, não os puderam ver ao vivo. Tigerman instigou ao amor (fosse ele por quem fosse), os Ornatos Violeta receberam-no. Em pleno.
E, depois, há Nick Cave, o homem para o qual, muitas vezes, as palavras parecem elementos vazios para funcionarem para descrição. O músico capaz de emocionar o mais empedernido dos corações. O pai que sabe, como ninguém, as dores do amor. O amante que traduz em canções os mais duros desenlaces. O equilibrista para o qual foi construída uma estreita passadeira pela qual viajou, sempre debruçado sobre o seu público – como se, naquelas duas horas em que os seus Bad Seeds ocuparam o Palco MEO, não houvesse separação possível entre o tal homem e os seus fiéis. Fiéis como a Paula, a aniversariante da noite, mas também como Beatriz, a jovem assassinada em 2020 e cuja história foi partilhada com Cave pela sua mãe, nos “The Red Hand Files”. Nick Cave & The Bad Seeds não visitavam Lisboa desde 2008, quando apresentaram “Dig, Lazarus, Dig” no Coliseu dos Recreios – mas ainda em Junho os tínhamos encontrado no NOS Primavera Sound. O alinhamento foi em tudo igual mas o resultado final não podia estar mais distante.
Se, em Junho, o lado gospel parecia mais exacerbado, a emoção parecia mais contida, a eficácia parecia mais presente do que o bater do coração, em Setembro, viveu-se a alma de uma música que é muito mais do que “meros” acordes a servirem de base a algumas palavras. Antes, estava a arrancar uma digressão que, em Lisboa, encontrava o seu derradeiro ponto final – e isso, provavelmente, fez toda a diferença. As canções tornaram-se orações maiores, as explosões tornaram-se impossíveis de ser contidas e o amor… O amor traduziu-se no tal bater do coração. Do dele, dos nossos. E, nessa altura, tudo parece redentor, libertador e inspirador. “Fucking obrigado”, disse ele no final. Não, Sr. Cave, nós é que dizemos “obrigado”. É bom saber que vivemos no mesmo tempo de alguém como Nick Cave. Dá esperança: na música, no amor e no homem. Fucking obrigada.
Foto: Pedro Francisco/MEO Kalorama