Da liturgia tornada concerto de Nick Cave ao sonho tornado espectáculo dos Gorillaz, mais de 100 mil pessoas passaram pelo Parque da Cidade em 2022.
Três anos. Foram precisos três anos para que as portas se voltassem a abrir e a música voltasse a impactar o Parque da Cidade. Em 2019, as mulheres foram o elo mais forte do cartaz do NOS Primavera Sound. Em 2022, não foram as mulheres quem chamou todas as atenções mas, ainda e sempre, quando se fala de como se observam desigualdades – de género, de raça –, observar um cartaz tão diverso, representativo e inclusivo quanto o do NOS Primavera Sound é sinal de esperança. De que (quando há vontade) tudo pode ser diferente – quer se vista o rap colorido de Little Simz, a euro-pop de Rina Sawayama, o fado-electrónico de Rita Vian ou o tecno-forró de Pablo Vittar. Ainda houve o rock pulsado de Jehnny Beth, a suavidade folk de Stella Donnelly, a experimentação experiente de Kim Gordon, o trap com olho no reggaeton de Paloma Mami ou a explosão electrónica onde tudo cabia do DJ-set de Grimes. Isto sem esquecer os sorrisos inesperados, em lábios tingidos de vermelho e com o escuro shoegaze dos Slowdive a ser iluminado pela “golden hour” do descanso do Sol, de Rachel Goswell. No feminino. Em total igualdade. Verdadeiras rainhas e senhoras – de si, do seu público, da sua importância. Rainhas e senhoras da sua vontade, do seu género, origem e cor, vindas do passado, com os pés assentes no presente e a dar provas para o futuro.
Em três dias, mais de 100 mil pessoas passaram pelo Parque da Cidade, no Porto. Com um recinto expandido e com novas disposições, por duas vezes a lotação do NOS Primavera Sound chegou ao seu limite máximo: 35 mil espectadores. Os culpados? Nick Cave e Gorillaz. No dia de abertura e na suprema despedida. Pelo meio, Beck mostrou que continua a ser um cavalheiro brilhante na arte da escriba de momentos pop que tanto se deixam tingir pelo rock quanto pela sedução funk, que tanto fazem dançar como se estivéssemos numa pista de um qualquer clube quanto se revelam experimentais e alternativos. O Sr. Hansen pode andar nestas lides desde os idos anos 80 mas a idade não lhe parece pesar.
Comece-se, no entanto, pelo final: se Song Machine, Season One: Strange Timez, o álbum que os Gorillaz publicaram em 2020, era uma verdadeira explosão de estrelas da constelação musical, o concerto (talvez não seja justo chamar-lhe “apenas” isso) dos Gorillaz tornou-se uma espécie de big bang: às canções juntaram-se os convidados (de Beck a Little Simz) e a eterna juventude de um Damon Albarn que teima em não perder o olhar (e a voz e a presença) de um miúdo traquina que ainda adora brincar com esta coisa magnífica a que chamamos música.
Só que esta coisa magnífica, esta música que nos liberta e nos eleva o espírito, que nos retira dos mais negros recantos da existência humana para sublimar instantes, esgares e sonhos é – quando genial – muito mais do que uma “mera” forma de arte. É uma verdadeira salvação. Diz-se que não devemos voltar ao sítio onde fomos felizes – mas somos sempre felizes quando reencontramos, no Palco NOS, esse compositor tornado pregador que assina como Nick Cave. Quando os primeiros acordes de “Get Ready For Love” são cuspidos pelo sistema de som, sabemos que não temos outra hipótese se não abrir o peito e recebê-lo de braços abertos (porque é de braços abertos e de olhos nos olhos que Cave se junta ao seu público, como se as grades não existissem, o palco não estivesse a quatro metros do chão e todos fôssemos, uma e outra vez, apenas um). Encostamos a cabeça no seu peito quando, um homem e um piano, suave, delicado, faz tremer o chão que pisamos em “Into My Arms” mas também sentimos que a catarse de “From Her To Eternity” é tão necessária quanto a confissão de “Waiting For You” ou a descarga frenética de “Higs Boson Blues”. É certo que esta liturgia em formato-concerto não se aproximou do sublime e inesquecível concerto (onde a chuva deu o toque final de mestria), neste mesmo cenário, em 2018 – mas Nick Cave nunca deixa de nos encher a alma. A subtileza da sua ironia, a delicadeza das suas palavras, a elegância da sua arte e o amor da sua música tornam-no genial: e deixam-nos, a nós que temos o privilégio de partilhar estes instantes com ele, seres humanos melhores.
Três anos depois, as portas do Parque da Cidade, no Porto, voltaram a abrir-se para receber o NOS Primavera Sound. Três dias de festival depois, quando as portas se fecharam, todos estávamos diferentes – e é tão bom poder dizer, escrever e viver tudo isto.
Fotos: Hugo Lima