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Língua Franca: “O início de uma coisa bonita”.

Língua Franca: “O início de uma coisa bonita”.
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Quatro MCs, dois países, um idioma e uma maneira de estar na vida. Um género, vários estilos, diferentes abordagens. Tudo isto é Língua Franca: um projecto que nasce por convite mas que acaba por se tornar numa aventura a sete mãos e uma só amizade.

 

Para conhecer Língua Franca, é preciso dizer que reúne Capicua, Valete, Rael e Emicida. É ainda necessário referir que as canções do álbum se debruçam nas produções de Fred Ferreira, Kassin e Nave. Importa lembrar que une figuras importantes do hip hop português e brasileiro, com trajectos que obrigam a viajar até à década de 1990 para encontrar os seus primeiros sintomas. Inverta-se a tentação de reduzir esta “língua” a um idioma – o português. Não se limitem, igualmente, as fronteiras desta geografia, apenas, a Portugal e Brasil. Alargue-se esta abrangência e diga-se que a “língua” é antes o hip hop. Mas também não é (só). Na verdade, em Língua Franca, nada é exactamente o que parece: um projecto que nasce por convite, traçado à distância, pensado em uníssono por dois braços de uma só editora (a Sony Portugal e Brasil) mas que acaba por se tornar numa obra coesa, com espírito de amizade, intervenção e lusofonia. Língua Franca é um disco mas também é uma nova maneira de estar na música – e este é, apenas, o início de uma coisa (que pode ser) ainda mais bonita.

 

Uma língua franca é um idioma usado como linguagem comum para quem fala dialectos diferentes. No vosso caso, é tentador reduzir a expressão “língua franca” ao português quando, na verdade, também é o rap.

Capicua: é a música, é a língua portuguesa, o rap, em particular, que mistura as duas coisas, no nosso caso. É essa ideia de língua em que nos comunicamos, língua que partilhamos e, ao mesmo tempo, língua franca no sentido de franqueza, daquilo que dizemos de forma aberta, sincera. É um nome que representa bem toda a ideia do disco.

 

Na verdade, o hip hop brasileiro teve uma importância grande no hip hop nacional. Valete, disseste que o primeiro MC que começaste a acompanhar foi o Gabriel O Pensador e, nos anos 90, foi num concerto do brasileiro que dois dos mais importantes projectos de hip hop do Porto nasceram.

Valete: sem dúvida. Acho que te estás a referir a 1993, quando o Gabriel O Pensador lança o primeiro álbum. Em 1994, faz duas datas, creio que uma no Porto e uma em Lisboa…

C: de cadeira de rodas!

V: de cadeira de rodas – são concertos clássicos. Creio mesmo que o Gabriel O Pensador é dos grandes influenciadores do rap português: na altura, tinhas muitos grupos a cantar em inglês e o Gabriel O Pensador, pelo sucesso que teve, mostrou a muita gente que era possível cantar em português e ter sucesso. Cantar rap em português e ter sucesso. A mim, influenciou imenso – [assim como] a muito pessoal da minha geração e até a uma geração anterior. Pode dizer-se que o rap brasileiro influenciou muito o rap português e depois, ao longo dos tempos, com alguma pena minha, não houve tanta ligação assim. Creio que está a haver cada vez mais e este projecto pode ser o início de uma coisa mais bonita e mais aproximada.

 

“Pode dizer-se que o rap brasileiro influenciou muito o rap português”.

 

De certa forma, acabamos por estar perante duas gerações comuns: Valete e Emicida começam na mesma altura, Rael e Capicua também.

C: não sei se as gerações se notam, até porque somos de idades parecidas… O que acho que se nota é que somos MCs que, apesar de termos estilos particulares, sotaques diferentes e formas de nos expressarmos diferentes, partilhamos da mesma perspectiva em relação ao rap. Temos um sentido de missão associado aquilo que fazemos musicalmente: a ideia de que a música pode ser uma ferramenta para a mudança do mundo, que é boa para celebrar, para entreter mas é muito melhor quando está a mudar a vida das pessoas. Acho que isso é comum aos quatro e qualquer outra diferença – geográfica, geracional, de género – fica pequena ao pé de tantas coisas que partilhamos.

 

Língua Franca não é apenas Portugal e Brasil, pois não?

V: creio que a primeira coisa que se nota é que, obviamente sendo um projecto luso-brasileiro, é um projecto lusófono. Eu sou africano, o Emicida e o Rael também são africanos, a mentora do projecto – que é a Paula Homem, da Sony Portugal – também é africana, é moçambicana… Há muito de África no disco. Creio que há algo que é partilhado por todos os membros do grupo: queremos que tenha uma continuação. Isto, provavelmente, deve ser a parte 1 do projecto e a coisa mais linda que poderia acontecer era, numa parte 2, teres aqui MCs guineenses, angolanos e, se calhar, não ficarmos só no rap – tentarmos abranger outros estilos musicais. Creio que está na altura de começarmos a fazer mais coisas com esta marca de lusofonia. Acho que é importante – temos aqui uma língua falada por quase 300 milhões de pessoas (ou, se calhar, nesta altura, por mais de 300 milhões de pessoas) e isto tem que ser aproveitado.

 

“Há muito de África no disco”.

 

O Valete já tinha colaborado com a Capicua que por sua vez já tinha partilhado o palco com o Emicida que por sua vez já tinha colaborado com Rael – mas como é que os quatro, efectivamente, se conheceram?

C: foi uma ideia da Sony Portugal em parceria com a Sony Brasil. Eles fizeram o convite aos MCs que acharam que podiam combinar entre si – pelas várias coisas em comum – e, ao mesmo tempo, que tivessem o mesmo sentido de militância na defesa da língua portuguesa e esta ideia de abertura do rap a outras músicas, a outros públicos e a outros circuitos, que é uma coisa que também partilhamos. Quando recebi o convite, fiquei muito feliz: já tinha colaborado com o Emicida e com o Valete – com o Rael ainda não. Era fã dos três e, só por isso, fiquei orgulhosa. Depois, eu própria tenho esse sentido de defesa e de divulgação da língua portuguesa como uma das minhas causas. Senti que era uma oportunidade de criarmos um disco que não vem de lá para cá ou de cá para lá: ele acontece nos dois países, existe em simultâneo nos dois territórios – quase como se criássemos (além de uma língua franca) uma zona franca de partilha de música, de referências, de mistura. Fiquei muito contente porque acho que combinamos muito bem os quatro e, apesar de ter sido um convite externo, fez muito sentido.

 

Parte do disco, foi trabalhada à distância mas, depois, concretiza-se num misto de residência laboratorial com 10 dias de big brother do hip hop.

V: se calhar, [esse] foi o maior desafio: tinhas que fazer um disco em 10 dias. Como imaginas, eu nunca tinha passado por essa experiência, a Capicua também não… Mais difícil ainda: estamos a falar de um grupo, com quatro MCs e três produtores – portanto, sete pessoas –, que não se conheciam assim tão bem e têm que fazer um disco em 10 dias. Surpreendentemente, a coisa fluiu mesmo muito bem. Se calhar, a grande responsabilidade foi do Emicida e do Rael, porque eles já tinham mais prática nesta coisa de fazer discos em estúdio e têm um drive, em estúdio, muito espontâneo mas, ao mesmo tempo, muito profissional. “Estamos aqui às 10 horas, às 10h15 já tem que estar a acontecer qualquer coisa”. Não há tempo para comer, não há tempo para ir à casa de banho…

C: mas há tempo para comer arroz doce.

V: ya, para o arroz doce. “Como é que é, já há refrão? Já há rimas? Valete, ainda estás a escrever? Não pode ser, ‘bora”. Eles conduziram o barco, a coisa fluiu muito bem e até fizemos mais do que 10 músicas. Há músicas que não estão no disco – estão ali guardadinhas no baú, que, de repente, podem sair num extra de vinil. Nunca se sabe, podem sair! Remixes!

C: acho que foi um desafio porque era tudo muito intenso mas, por outro lado, era essencial que fosse assim – senão, ia soar a disco por correspondência. Aquela coisa de estar em estúdio, a definir que instrumentais é que vamos escolher, que temas é que vamos abordar, quem é que entra em cada música, escrever ali na alcatifa do estúdio, experimentar, gravar, misturar as vozes: isso deu uma coesão ao disco que se nota, deu um sentido de união ao grupo. Em termos humanos e musicais, isso foi importante. O resto do trabalho – os acabamentos, alguma coisa que ficou por escrever ou por gravar – foi feito posteriormente mas sempre neste sentido de brainstorming colectivo, de democracia do grupo. Acho que se não tivesse havido essa coesão, se calhar, o disco ia ser uma coisa estranha. Assim, é um disco mesmo coeso.

 

“A música pode ser uma ferramenta para a mudança do mundo”.

 

Apesar de ser um projecto a quatro vozes, nem sempre surgem os quatro: “A Chapa É Quente” só tem Emicida e Rael, “(A)Tensão!” só tem Emicida e Capicua…

V: a ideia era não formatar, não ter fórmulas. A ideia era que fosse uma coisa muito espontânea: recebemos à volta de 60 instrumentais, fizemos uma selecção e, depois, cada um, entrava nos instrumentais em que estivesse mais confortável. Uma ideia que tínhamos – até porque isto surgiu de um convite externo – era que isto não soasse a boys-band.

C: estou aqui eu. Sou menina!

V: exactamente. Aquela coisa natural: “Emicida, Rael – estão a sentir este beat? Façam um “A Chapa É Quente”, ‘bora dar aqui um bocado de “flavour” de São Paulo ao álbum… Acho que isso traz muito de inesperado, ao disco – e sem regras. Foi assim que fluiu.

 

Os MCs portugueses queriam um álbum mais de hip hop tradicional, os brasileiros queriam uma coisa mais MPB – e acabam por se encontrar a meio caminho.

C: este disco é mesmo o disco do meio do caminho: não só foi feito por duas metades como, em termos musicais, é muito brasileiro (porque mistura baile-funk com música afro com hip hop mais clássico com hip hop mais electrónico com MPB com a voz da Sara Tavares, algures, ali no meio) ao mesmo tempo que é muito hip hop ‘tuga no tipo de temas que abordamos (desde aqueles temas mais clássicos e universais – a amizade, a música – como temas mais políticos e sociais). A forma como os abordamos, o tipo de escrita, foi muito o tipo de rap que se faz em Portugal: exigente do ponto de vista lírico, com alguma seriedade, e, ao mesmo tempo, que consegue ir a vários temas, que é versátil. Acho que essas duas coisas – o ponto de vista da escrita e o ponto de vista musical – é mesmo o meio do caminho. Acho que isso era o que se pedia. Claro que, depois, aqui, também entram os produtores: o Kassin que é mais da MPB, o Fred que é de todos os estilos musicais, o Nave que é um beatmaker muito versátil mas mais da área do hip hop… Acho que, mesmo que eu estivesse a sentir a falta daquela tarola pesadona ou daquele groove mais hip hop, o facto de eles trazerem outros sons, outros instrumentos e aqueles arranjos mais de canção fizeram com que, para mim, fosse uma oportunidade de experimentar outras coisas e beats ou temas que não escreveria por mim ou que nunca me lembraria de pôr num disco meu… Ali, foram uma experiência, teve essa dimensão experimental.

 

“Este é mesmo o disco do meio do caminho”.

 

No primeiro single, “Ela”, vocês falam da música mas também da vossa relação com a música, da forma como ela vos emociona e como ela, de certa forma, vos salvou.

V: [e] a forma como a música afecta as nossas vidas, a relação que temos com ela… O instrumental do “Ela” foi o mais consensual – não houve muitos instrumentais consensuais, esse foi o mais consensual. Serviu mesmo para darmos aquela energia que tínhamos no estúdio. Era o single ideal: porque foi o tema mais consensual mas também porque é o que reflecte melhor o espírito que tivemos em estúdio.

C: o próprio vídeo também mostra um bocadinho o processo – as imagens de estúdio, de trabalho, de convívio… Acho que é uma música que representa muito bem o espírito do disco.

 

Pensado e criado em estúdio, como é que um colectivo como Língua Franca é pensado na sua transposição para o palco?

C: a ideia é misturar as canções de Língua Franca com as nossas próprias músicas anteriores mas mantendo esse espírito de colaboração e trazendo músicas em parceria: eu tenho uma música com o Valete, vamos tocar essa música; eu já fundi uma música minha com o Emicida, vamos tocar essa música… Mesmo os nossos mini-concertos individuais dentro do concerto de Língua Franca vão fazer essas pontes, para que seja uma mistura de Língua Franca com as nossas próprias músicas – mas sempre juntos e misturados.

Ana Ventura Ana Teresa Ventura trabalhou na Blitz durante dez anos e hoje podemos vê-la tanto em festivais de verão cobertos pela SIC, como na sua rubrica, M de Música do programa Mais Mulher, na SIC Mulher.

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